segunda-feira, 21 de maio de 2012

O encontro post mortem de Mies, Wright e Le Corbusier

Texto de Irã Dudeque publicado na Revista AU. Confira: http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/218/arquitetos-na-eternidade-mestres-no-paraiso-257968-1.asp

Frank Lloyd Wright não percebeu que havia morrido. Acordou num Taliesin celeste, idêntico ao terreno, e manteve suas ocupações habituais. Dias depois, emocionou-se com a inesperada visita de Ralph Waldo Emerson. Enquanto parlamentavam a respeito da capacidade inata da consciência individual, um pensamento afligiu Wright: "Mas Emerson morreu quando eu tinha 15 anos...".

Na tarde seguinte, Wright recebeu uma abastada família em busca de um projeto residencial. Em meio a croquis e vastas divagações a respeito da importância da arquitetura, Wright pressentiu que conversava com demônios e anjos. As entidades abandonaram os disfarces e esclareceram a situação. Wright encontrava-se em uma região intermediária e Deus concedia-lhe o livre-arbítrio: escolher entre abismar-se ao inferno ou atingir o paraíso. Os demônios propagandeavam um inferno repleto de gozos sensuais, no qual Wright poderia esgotar-se nas atividades que o satisfizessem (música, sexo, poesia, bebedeiras), com exceção daquela que o entretinha na terra, a arquitetura. Já os anjos prometeram-lhe um mundo particular, no qual Wright exerceria as infinitas possibilidades arquitetônicas. Tratava-se de uma formalidade. Arquitetos sempre escolhem o paraíso. Contabilistas, publicitários ou corretores costumam preferir o inferno.

Como não há tempo no paraíso, cada alma dispõe do dom de estabelecer um tempo próprio, que lhe agrade: pode optar por jornadas de dias ou anos, pode espichar essas divisões, ou encurtá-las, ou aboli-las, ou fazê-las retroceder. Em geral, Wright preferia dias imensos e noites breves. Numa manhã, recebeu a notícia da chegada de Corbusier ao paraíso. Depois, soube da chegada de Mies.

Todos estabeleceram o mesmo pacto com os anjos, e ganharam um mundo específico. Wright optou por uma coleção de paisagens agrestes e incomensuráveis, com montanhas, baías, rios, geleiras, praias, florestas e desertos, nos quais espalhou milhares de residências irrepetíveis. Mies quis um mundo isento de vicissitudes, sem temperatura, sem ventos, sem dias ou madrugadas: projetava espaços fluidos para os anjos. Le Corbusier moldou um mundo apoteótico, repleto de estios, guerras, mazelas sociais e tempestades. Criava catástrofes a fim de dispor de milhões de desgraçados para abrigar. Construía cidades imensas, apenas pelo prazer de substituí-las por outras. Moldou montanhas infindas, para criar urbes lineares que cresciam ao longo de viadutos e túneis. Mies mantinha conversações amenas com Schinkel e Palladio. Corbusier preferia discutir e brigar com Alberti, Marc-Antoine Laugier, Etienne-Louis Boullée e Palladio. Wright orientava discípulos e se entretinha com Emerson e Bach.

Mas tanto Wright quanto Corbusier sentiam que faltava algo para completar suas felicidades. Os anjos intuíram a angústia e concederam inimigos aos arquitetos. O mundo de Corbusier recebeu fantasmas de estetas ecléticos, de funcionalistas minuciosos e de burocratas torturados pela azia; caipiras milionários apareceram no mundo de Wright ostentando um kitsch frondoso. Todos queriam obstruir os projetos dos arquitetos, que obrigavam-se a formular argumentos irrefutáveis. Só atingiam a bem-aventurança quando derrotavam a imbecilidade circundante. Como estavam no paraíso, venciam todos os confrontos.

Em suas vidas terrenas, Wright, Corbusier e Mies acreditavam em versões diferentes do mesmo Deus. Wright vislumbrava um caminho intuitivo até Ele, sem a necessidade de milagres ou mediadores. A crença áspera de Corbusier reunia predestinação e eleição incondicional. Mies estudou na escola de uma catedral católica construída por Carlos Magno. No paraíso, nos momentos de reflexão arquitetônica ou religiosa, Mies, Corbusier e Wright caminhavam, mas evitavam encontrar-se. Cada um recebia notícias dos outros dois, mas se fingiam indiferentes. Os três queriam encontrar-se com Deus e solicitavam o favor dos anjos, que, apenas nesse caso, mantinham-se arredios.

Em uma caminhada fortuita, Wright, Corbusier, Mies e Deus encontraram-se, no cruzamento de duas veredas. Deus saudou-os, mas chamou Mies de Corbusier e, depois, de Wright. Chamou Wright de Corbusier e de Mies. Chamou Corbusier de Wright e de Mies. Por respeito, não O corrigiram. Estremeceram ao lembrar que a mente divina não erra. Ao final da conversa, os três entenderam que, para a onisciente divindade, todos eles compunham um único arquiteto.

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