sexta-feira, 19 de julho de 2013

RESENHA: A sociedade justa e seus inimigos

Na próxima quarta-feira, dia 24 de julho, o IAB convida para mais um encontro do Ciclo Conversando com os Arquitetos, que terá como discussão o tema “As dimensões ocultas da riqueza”. O convidado será o doutor em sociologia Antonio David Cattani. O sociólogo é coautor do livro A Sociedade Justa e seus Inimigos, da editora Tomo Editorial (Ficha técnica aqui).

Leia a resenha do livro feita por Lorena Holzmann:

A sociedade justa e seus inimigos
Antonio David Cattani e Marcelo Ramos Oliveira (orgs). Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012, (184 p.) ISBN 978-85-86225-77-2

Lorena Holzmann*

Os mecanismos pelos quais o Estado arrecada os recursos que vão viabilizar seu funcionamento são desconhecidos pela maioria dos cidadãos, os quais, além de tudo, pouco interesse manifestam em seu desnudamento, ainda que, no Brasil, haja apelo para tal através do “impostômetro” (de insuspeitado interesse em promover, entre a população, a aversão à cobrança de impostos, necessários para viabilizar a ação do Estado). O conhecimento desses intrincados e pouco visíveis mecanismos (especialmente quando o sistema tributário é regressivo) é domínio de uns poucos estudiosos e profissionais vinculados às funções fiscais e tributárias do Estado.

De modo simplificado, pode-se entender um sistema tributário como um conjunto de disposições que regula a coleta de recursos numa sociedade com a qual se assegura a sustentação do Estado e a efetivação de suas funções, historicamente definidas. O sistema tributário é o mecanismo-chave pelo qual os recursos públicos são amealhados entre determinados segmentos da população e distribuídos sob a forma de serviços ou via políticas públicas também a favor de determinados grupos dessa população, de modo mais ou menos amplo e equânime. Nesse trânsito entre a coleta de fundos e o retorno aos cidadãos, muita coisa acontece e é aí que se alojam os inimigos da sociedade justa, no Brasil e no mundo globalizado sob a lógica do capital, enfocados pelos autores reunidos nesse livro, organizado por Antonio David Cattani e Marcelo Ramos Oliveira, sob o sugestivo e instigante título de A sociedade justa e seus inimigos (um contraponto a A sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper?). Esse seleto grupo de autores expõem, de maneira simples e compreensível ao leitor os mecanismos que, no Brasil, atuam no sentido de privilegiar os ricos, sobreonerando os mais pobres com cargas tributárias que mantém e perpetuam a desigualdade social , traço profundo da sociedade brasileira. Tratando de diferentes temas, os autores têm em comum a perspectiva teórica crítica do papel do Estado conivente com os interesses do grande capital (e, em determinadas circunstâncias, até dele prisioneiro), capital que se vale das mais variadas artimanhas para assegurar a intocabilidade de seus interesses e privilégios.

Os autores percorrem os meandros da legislação tributária brasileira, extremamente regressiva, apontando-a como um dos obstáculos à sociedade menos desigual, um dos pilares da sociedade justa. Nesse percurso, são abordados, de modo contundente, a face desses inimigos, legislação, instituições, pessoas e práticas, tais como as bases e a carga tributárias, revelando quais os segmentos da população penalizados e quais os beneficiados; o sistema previdenciário, que beneficia alguns segmentos da população em detrimento de uma distribuição mais equilibrada entre a massa de beneficiários; as políticas sociais e quem as financia; o tratamento dado à divida pública; as resistências veladas ou manifestas contra uma lei que incidisse sobra as grandes fortunas; as armadilhas da legislação que inviabiliza medidas investigativas diante da inexistência material de provas dos delito que justamente devem ser investigados; a leniência legal com sonegadores e fraudadores, levando à impunidade; a “inviolabilidade dos direitos adquiridos”, engessando as possibilidades de mudanças que pudessem eliminar ou dirimir as grandes desigualdades vigentes no país. Os autores reunidos no livro têm em comum a denúncia contundente desses mecanismos que, tanto no nosso país como no espaço globalizado, permitem aos ricos e poderosos preservar seus interesses e suas riquezas intocados. E nessas denúncias os autores são implacáveis, examinando práticas de instituições que estão a serviço desses interesses, sem deixar de dar nomes a executivos que as fazem funcionar, e seu pernicioso trânsito entre os setores público e privado, favorecendo sempre os interesses do grande capital. Não fogem à penetrante argúcia dos autores as tantas ilegalidade (e até práticas criminosas) que tem os mesmos objetivos de defesa dos endinheirados e o que representam como obstáculos à construção de uma sociedade justa.

Os artigos do livro, ainda que enfatizem a situação brasileira, não se restringem a ela. Contemplam, também, instituições, práticas e legislação internacionais que se articulam na preservação de privilégios do grande capital. Destaque deve ser dado à existência dos paraísos fiscais, reduto de proteção de transações nem sempre lícitas, mas sempre impeditivas à construção de sociedades nacionais mais justas. As garantias de sigilo e de anonimato dos depositantes nesses enclaves servem de acobertamento a atividades ilegais, criminosas, de sonegação fiscal, usurpando recursos que deveriam ser recolhidos nos países de origem, viabilizando uma maior proximidade com o bem comum.

A leitura de A sociedade justa e seus inimigos torna-se uma leitura obrigatória para a compreensão do significado dos sistemas de tributação, suas distorções e o que pode e deve ser feito para corrigi-las. Não há, para tanto, uma receita milagrosa. Mas os autores são unânimes em reconhecer que somente numa sociedade democrática será possível mobilizar a população para iniciar a mudança que poderá conduzir a uma sociedade mais justa. Antes disso, porém, é necessário que a população tome conhecimento da realidade do sistema tributário de nosso país e compreenda em que sentido deve reivindicar mudanças. Isto os autores fazem com muita competência, clareza, sem apelo a uma linguagem técnica incompreensível para o grande público, tornando o texto de fácil compreensão a não iniciados, mas comungados na perspectiva de uma sociedade justa e comprometidos com sua construção.

*Socióloga. Doutora em Sociologia pela USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS (Capes, nota 6).

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