segunda-feira, 21 de outubro de 2013

ARTIGO: Legado

de Roberto Ghione*

            Que irão falar de nós, enquanto arquitetos e urbanistas, daqui a 50, 100 ou mais anos? Como irá progredir a evolução (ou involução) da arquitetura e das cidades? Será considerada nossa reação a um sistema que teima em perdurar a banalidade e vulgaridade globalizadas? Ou seremos classificados como uma geração complacente com o poder econômico e incompetente para resolver os problemas e desafios das nossas cidades e do nosso planeta? A arquitetura assumirá sua condição de serviço à sociedade? Ou continuará sendo objeto de manipulação dos interesses do mercado? Seremos capazes de reivindicar a emoção oculta atrás de tanta burocracia e tecnocracia?
            Temos pela frente enormes desafios que hoje se manifestam de modo emergencial na crise de urbanidade e civilidade das nossas cidades. A persistência da desigualdade e injustiça social tornou-se o pivô em torno do qual giram os problemas cotidianos: exclusão, violência, imobilidade, desprezo pela convivência em espaços públicos qualificados, jogo de interesses na definição das políticas urbanas e na construção da cidade. A reação torna-se iminente com políticas de integração social e de reivindicação do planejamento e de um projeto de cidade, ainda ausente na cultura politiqueira e imediatista.
            Mas o legado do nosso tempo é a imagem da cidade que estamos construindo. Quase sem exceção, as cidades brasileiras estão unificando e mediocrizando suas imagens e paisagens urbanas com uma “camada” de arquitetura imobiliária banal e repetitiva, baseada na lógica míope da exploração do potencial construtivo e dos interesses do mercado. Essa camada de arquitetura, produzida nas últimas décadas, sepulta, invariavelmente, os elementos da paisagem natural ou da evolução cultural, que por suas características, constituem os suportes da identidade social e urbana.
            As leis de edificação, baseadas na ideologia extrativa da potencialidade econômica fundiária, ignoram supinamente a configuração da paisagem urbana. A imagem da cidade configura-se pela dimensão dos terrenos da malha parcelada. O resultado é a fragmentação e heterogeneidade produzida por uma visão tecnocrática do planejamento, que atende exclusivamente aos interesses imobiliários, com total desapego pela integração social e pela construção de espaços urbanos que propiciem a convivência civilizada.
            O legado em construção reflete o egoísmo e arrogância de uma sociedade doente em consumo, interesseira e excludente. Os prejuízos de tal ideologia se rebatem contra os próprios cidadãos ditos privilegiados, condenados a morar trancados em condomínios fechados ou em edifícios defensivos, a sofrer os cotidianos engarrafamentos de trânsito – com a conseqüente perda de produtividade, tempo e saúde – e a fomentar uma cultura de segregação e intransigência social.
            A sociedade, hoje mais esclarecida, tem tomado consciência do sistema perverso e já reclama mudanças merecidas. O momento de construir um novo legado é agora, se temos a pretensão de iniciar um processo de efetiva reivindicação geracional, urbana e social.

            O desafio é essencialmente político e será resolvido com progressiva ascensão social e elevação dos níveis de educação. Uma sociedade consciente do poder e oportunidade de transformar a realidade na orientação dos sonhos coletivos, estimulada a cobrar decisões políticas conseqüentes com a dignidade social e reivindicar o direito à cidade será o suporte para a construção do legado de grandeza que o país merece.

Roberto Ghione é arquiteto e urbanista.

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