No mês que marca o Dia do Meio Ambiente - 5
de junho -, um dos pioneiros do movimento ambientalista no Rio Grande do Sul, Celso
Marques não vê motivos para comemorar. Ele percebe um movimento de
retrocesso desde os anos 1980, quando os ativistas conseguiram apoio da
sociedade para aprovar propostas que visassem à preservação da natureza.
A entrevista é de Fernanda Bastos, publicada
pelo Jornal do Comércio, 09-06-2014.
Nesta entrevista o ecologista, que acompanhou boa parte da
trajetória de José Lutzenberger na Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan),
lamenta que o Estado que foi o berço do ativista não tenha adotado em suas
práticas a perspectiva de desenvolvimento aliado à proteção do meio ambiente. O
ex-presidente da Agapanainda analisa recentes polêmicas envolvendo
o movimento na Capital, como o corte de árvores na avenida Beira-Rio e no
entorno do Hospital de Clínicas.
Para ele, os avanços obtidos pelo movimento ambientalista
nos anos 1970 e 1980 estão sendo afetados pela falta de planejamento dos
governos municipal, estadual e federal. Marques ainda critica
as mudanças na legislação, como a elaboração do Código Florestal, e indica erros do Judiciário nas suas
análises sobre causas ligadas à área.
Eis a entrevista.
Qual é o papel de Lutzenberger na sua formação como
ambientalista?
Conheci o Lutzenberger em 1973. Quando ouvi as coisas que
ele falou pela primeira vez, uma série de coisas que estavam em aberto se
fecharam na minha cabeça. O meu estudo foi na Agapan, que, naquela época - como
até hoje - era uma espécie de universidade informal, porque nem nas
universidades havia ecologia. Então, a gente aprendia muito com o Lutzenberger. Tinha muita gente da universidade,
porque o corpo social, os conselheiros da Agapaneram, em sua grande
parte, um número muito grande de professores da Ufrgs. Foi com o Lutzenberger que
passei a frequentar a Agapan, a ONG que deu início
a todo o movimento ambientalista e teve, inclusive, um reconhecimento nacional
naquela época.
É interessante, porque foi um período da ditadura militar,
em que havia dentro das redações dos jornais censura, então surge a ecologia
que era uma forma de pensamento que não se enquadrava nem no que se entendia
por esquerda, nem no que se entendia por direita. Era uma coisa nova. O
pensamento ecológico não se enquadrava muito bem no paradigma ideológico
existente, que era dessa polarização entre esquerda e direita, favorecendo a
cobertura imensa que a imprensa deu durante vários anos à questão ecológica. Criticar
políticas públicas sem ser acusado de comunista, fazer uma crítica ecológica,
isso também deve ter sido um fator para que tivéssemos uma cobertura da
imprensa muito grande nos anos 1970 até os anos 1980.
E como está hoje?
Houve um envolvimento maior dos interesses. Como muitas
vezes os anunciantes são os maiores poluidores, a grande imprensa passa a mão
por cima do interesse dos anunciantes e isso é um fator muito prejudicial. E a
situação mudou bastante daquela época para cá. Porque, quando falamos da
questão ambiental, não estamos falando mais de coisas abstratas. Temos uma
Constituição Federal, uma Constituição Estadual, leis orgânicas municipais,
numerosos cursos de ecologia e também assuntos correlatos à questão ambiental,
quer dizer, o contexto é outro. Hoje, temos condições de cobrar do Estado, e
também quando uma empresa pisa na bola cobramos, porque temos uma legislação a
ser cumprida.
As leis são suficientes para evitar abusos?
O grande problema que vemos hoje é que os programas
ecológicos muitas vezes não são levados como políticas públicas pelo Estado,
porque não temos uma democracia de fato. Temos uma democracia de direito, mas
não temos uma democracia de fato, porque a gente não tem no Brasil uma tradição
do Estado, da sociedade respeitar as leis. Uma vez o Paulo Affonso Machado, que é considerado um dos
maiores juristas da área ambiental no mundo, e fez uma conferência aqui em
Porto Alegre, e disse: “Olha, vivemos uma situação que é completamente
escandalosa no Brasil, porque se formos ver o que está rolando na área do
direito ambiental, ações na Justiça que dizem respeito a isso, o Estado é réu
em 97% das ações que rolam no País”. Ou seja, o Estado não dá o exemplo.
Recentemente perguntei a ele sobre esse dado, e ele disse que não sabia se
permanecia o mesmo, mas lembrou que naquela época a questão ambiental estava em
alta e hoje está em baixa, então provavelmente deve ser muito mais.
A Operação Concutare, no ano passado, alertou para
problemas nos órgãos de Estado
É quase um consenso dentro dos funcionários da Fepam que,
desde o governo da Yeda Crusius (PSDB) para cá, o órgão foi
praticamente destruído. Hoje é um órgão que está cheio de problemas, muitos
funcionários se demitiram, outros foram pressionados pela direção quando
tomavam posições técnicas que eram contrárias aos interesses políticos e
ficaram marginalizados, então se criou um clima.
Em termos de políticas públicas ambientais, houve avanços
dos anos 1970 para cá?
Um dos avanços efetivos que a questão ambiental teve na
nossa sociedade foi a Constituição Federal. A sociedade civil participou
bastante dessa construção, a Agapan fez abaixo-assinado com milhares de
assinaturas que foram encaminhadas a Brasília para incluir certas questões no
próprio texto da Constituição. Ampliamos a questão ambiental dentro da própria
legislação, nesse período que foi de consolidação das questões ambientais
através da estrutura do texto constitucional. Tivemos todo um trabalho aqui no
Rio Grande do Sul, por exemplo, teve um trabalho sobre o Código do Meio
Ambiente na Assembleia Legislativa durante uns 10 anos e depois esse
código foi aprovado na Assembleia por unanimidade, foi super debatido.
Mas agora os retrocessos começaram nessa movimentação de
determinados setores produtivos que se mobilizaram para retroceder a legislação
ambiental do Código Florestal, por exemplo. Foi uma grande
derrota que a sociedade brasileira sofreu. E, em um país em que basicamente o
Estado se caracteriza como delinquente ambiental, como é o caso do Brasil,
estamos vendo que a questão ambiental, inclusive algumas vezes até o próprio
Judiciário se equivoca como é o caso dessa lei que libera agrotóxicos que são
proibidos em alguns países, descumprindo nossa própria lei aqui.Ou seja,
conseguimos fazer uma legislação, conseguimos envolver também o Ministério
Público como um guardião da legislação e do seu cumprimento, movimentamos esses
setores todos, mas, no âmbito do próprio Judiciário, às vezes, enfrentamos o
desconhecimento.
A Agapan está mobilizada contra decisão do TJ sobre os
agrotóxicos, por exemplo?
Sim. Grande parte da luta ambiental está no jurídico, porque
está tendo uma ressonância boa no setor de proteção do consumidor sobre essa
questão dos agrotóxicos, que era um tema pelo qual brigávamos sozinhos. E
agora, o pessoal que está preocupado com segurança alimentar começou a se dar
conta de que é tudo a ver com a prevenção da saúde pública.
O senhor é um crítico da atual estrutura dos conselhos
municipais, apontando falhas no sistema de representação.
Um exemplo é que em Porto Alegre estamos em briga com a
Câmara de Municipal em função da lei das antenas de telefonia celular. A Câmara
não queria fazer audiência pública, tivemos que ir à Justiça para garantir.
Fazer uma audiência pública já é um avanço, agora o fato que a gente constata
também com a nossa participação em numerosas audiências é que, muitas vezes, o
próprio Estado escuta todo mundo, mas ele dá voz, mas não dá vez. Quer dizer, a
prefeitura escuta todo mundo, mas não leva em conta o que escuta.
No caso do Conselho Estadual de Meio Ambiente,
se pegar os históricos, todas as atas e discussões que se levaram a cabo no
conselho, vamos ver as votações e vamos ver as entidades ambientalistas que
estão presentes lá acabam sem voz, só servem para carimbar projetos. O Plano
Diretor é outro caso, a gente via que, nas reuniões do conselho,
muitas vezes os arquitetos, urbanistas, ecologistas e pessoas que estão
preocupadas com a cidade são recebidas como estranhas no ninho, tranca-rua. A
constatação é que o político e o empresário, eles trabalham dentro de um
conjunto de limitações que levam a pensar a curtíssimo prazo. Mas se passa 46
anos pensando a curto prazo, fica parado.
O meio ambiente sofre com a falta de continuidade das
políticas nas esferas federal, estadual e municipal?
Um exemplo é a discussão sobre o (o corte de árvores para a
ampliação do) Hospital de Clínicas. Como é que se colocou na mídia? Como se
estivéssemos há 40 anos falando para as paredes. Como depois de 43 anos de
sensibilização da nossa coletividade com a questão ambiental, como se coloca um
debate público assim? E o mesmo com a questão das árvores da avenida Edvaldo Pereira
Paiva. No caso do Hospital de Clínicas, com muitas árvores plantadas pela Agapan na
década de 1970, chegou a ser grotesco, porque nos debates colocaram os termos
assim “Prefere proteger a vida de uma pessoa ou de uma árvore?”. Isso é a
redução do problema ecológico no nível mais baixo. A opinião pública tem sido
desinformada, porque se colocam os problemas não nos termos que eles estão
sendo colocados pelos ecologistas. O que na realidade está havendo é uma forma
grotesca de super simplificação de um problema. Nos dois casos e em geral
poderia ter outras formas de resolver o problema sem cortar as árvores.
Mas tem muita gente que não gosta de árvore, engenheiros que
veem as árvores como um problema. É o primeiro ponto, um projeto na área
ambiental tem que cumprir com a exigência de ter levado em conta várias
alternativas, mas tem gente que diz que nem existe projeto na área urbana e que
os últimos projetos viários de Porto Alegre ocorreram em 1940. Manipularam a
opinião pública como se os ecologistas fossem contra, não é isso. A prefeitura
está com uma visão de planejamento urbano, de transporte urbano e de mobilidade
que é completamente anacrônica e daí se coloca que somos contra a derrubada das
árvores. Não, sendo um projeto inteligente que esteja de acordo com o que há de
mais avançado na área de urbanismo e de mobilidade urbana, se precisasse
derrubar mil árvores, mas que fosse um projeto bom, os ecologistas estariam
apoiando. Mas derrubar centenas de árvores para um projeto burro que está na
contramão da história? Não podemos apoiar. Como a prefeitura faz, então? Ela
joga a opinião pública, coloca o problema em termos completamente equivocados,
é um processo antidemocrático.
A perspectiva para os próximos anos é negativa?
A questão ecológica é uma questão complexa. Ela é um
elemento definidor do que seria um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Como
nunca se conseguiu contrapor argumentos que de fato derrubem os questionamentos
ecológicos, então hoje se aceita a questão ecológica, mas com a seguinte
ressalva: temos que conseguir conciliar desenvolvimento com conservação do meio
ambiente, como se fossem coisas separadas. Mas o primeiro texto que li do
Lutzenberger foi um texto de uma aula inaugural que ele deu com o título “Por
uma ética ecológica”. Esse texto do Lutzenberger me parece completamente atual
hoje, porque o que ele coloca é que a questão ecológica está enraizada na nossa
próxima cultura, porque a nossa cultura não tem uma ética ecológica. Por
exemplo, se eu te matar ou fizer uma agressão física, estou sujeito a ser
punido pela lei, agora se destruo um ecossistema - antes da existência de leis
- não teria problema, porque a nossa visão, é uma visão de que a natureza não
faz parte das nossas preocupações.
A nossa cultura nos blindou, é concentrada no homem isolado
da natureza. Fazer mal a um homem é totalmente condenável, agora fazer mal à
natureza, botar agrotóxicos, radiações eletromagnéticas prejudiciais à saúde,
isso não conta, porque a nossa atitude é como se não tivéssemos nada a ver com
a natureza. O Brasil é considerado o país mais rico do planeta em termos de
biodiversidade, uma potência ecológica. Mas só vamos ter um lugar ao sol como
nação se incorporamos a questão ecológica à nossa concepção de desenvolvimento.
É a única saída para termos uma importância dentro das nações e de realizar uma
vocação de felicidade, de bem-estar, de civilização, de qualidade de vida.
Perfil
José Celso Aquino Marques tem 69 anos. É natural de Bento Gonçalves. Veio para Porto Alegre aos dois anos de idade. O interesse pelo ativismo ambiental surgiu no início dos anos 1970, ao ouvir uma palestra de José Lutzenberger, fundador da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan. Atua ativamente na entidade desde 1973, dois anos depois de sua criação. Foi presidente da Agapan por três gestões e integra o Conselho Superior da entidade, sendo coordenador ainda da Comissão Jurídica. Neste ano, recebeu homenagem dos conselheiros pela sua contribuição à causa. É um dos principais líderes dos ecologistas gaúchos nas últimas décadas. Professor de Filosofia, também atuou como educador ambiental. Antes de se dedicar ao ensino, trabalhava como publicitário e jornalista. Graduou-se em Filosofia nos anos 1980. Nesse período, também integrou a equipe do extinto Departamento do Meio Ambiente, no governo do Estado.
José Celso Aquino Marques tem 69 anos. É natural de Bento Gonçalves. Veio para Porto Alegre aos dois anos de idade. O interesse pelo ativismo ambiental surgiu no início dos anos 1970, ao ouvir uma palestra de José Lutzenberger, fundador da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a Agapan. Atua ativamente na entidade desde 1973, dois anos depois de sua criação. Foi presidente da Agapan por três gestões e integra o Conselho Superior da entidade, sendo coordenador ainda da Comissão Jurídica. Neste ano, recebeu homenagem dos conselheiros pela sua contribuição à causa. É um dos principais líderes dos ecologistas gaúchos nas últimas décadas. Professor de Filosofia, também atuou como educador ambiental. Antes de se dedicar ao ensino, trabalhava como publicitário e jornalista. Graduou-se em Filosofia nos anos 1980. Nesse período, também integrou a equipe do extinto Departamento do Meio Ambiente, no governo do Estado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário