* Sérgio Magalhães
Nos últimos 50 anos, nosso país viveu um tempo mágico. Triplicou a população, passou de subdesenvolvido a emergente, tornou-se potência em múltiplos aspectos. Incorporou dezenas de milhões à cidadania. Decuplicou a população das cidades — principal plataforma do crescimento nacional.
Até aqui viemos. Para a frente, as responsabilidades, a democracia, a presença internacional, exigirão do Brasil outros compromissos. A estabilidade demográfica e a economia mundial sugerem que sejamos mais atentos ao que queremos e ao modo de conquistá-lo. O poeta Antonio Cícero propõe a desautomatização do pensamento para apreender. É uma boa expressão, que sugere a re-visão de mitos e modelos. Entre eles, por certo se encontra o mito de que o país só se faz com o improviso, com o jeitinho. Não há mais lugar para o desperdício e falta de transparência nas decisões.
Os desejos demandam explicitação para que possam ser construídos coletivamente. É a explicitação que reduz a arbitrariedade e, não menos importante, a corrupção. O projeto é o instrumento civilizatório que responde a essa questão, que diz qual é a intenção de futuro e permite que antecipadamente a compartilhemos, que a dimensionemos, que a provisionemos, para que a construamos segundo o desejado. Mas o país desdenhou esse instrumento, quase desaprendeu a planejar.
O que faremos para nossas cidades serem sustentáveis? Qual o projeto que temos para a ocupação urbana: mais expansão predatória? E para a mobilidade? Quais são as redes de transporte a implantar? A que custo? Quais são os projetos para nossas águas urbanas e para o saneamento? Nas cidades, a falta de projeto (logo, de debate) encobre as assimetrias entre agentes urbanos e induz os governos a pressões unilaterais e desproporcionais de interlocutores mais bem posicionados. A falta de projeto também pode levar a obras ou programas superados em conceito ou oportunidade.
Veja-se o programa Minha Casa, Minha Vida. Após décadas sem política de habitação e sem debate, quando o governo resolve contrapor-se à crise, para criar emprego e expansão industrial, adota o modelo do antigo BNH, superado desde os anos 1980. Foi um improviso, paradoxalmente déjà vu. O MC,MV merece um projeto contemporâneo, social e urbanisticamente relevante.
E os aeroportos? Sabe-se que são anacrônicos, arquitetônica e funcionalmente. Desconhecem-se autorias e custos das gambiarras sucessivas que desqualificam essas portas do país. Agora, alguns serão privatizados. Há determinação quanto a projetos e sua qualidade?
Elaborar projetos pressupõe definir conceitos, fazer escolhas, indicar procedimentos — e, em quase todos os casos, intervir no espaço da cidade, influir nos limites do público e do privado, criar novas relações sociais, econômicas e políticas.
Em artigo publicado no GLOBO, a propósito da queda do edifício Liberdade, o professor J. M. Wisnik sugere que a causa da ruptura poderia ser o que chama de “gambiarra carioca”: “no Rio, a gambiarra parece ser o próprio fundamento para o funcionamento das coisas.”
Receio que tal avaliação seja restrita: seria ótimo para o país que a gambiarra fosse apenas no âmbito carioca — seria mais fácil enfrentá-la. Mas há evidências para considerar que ela é mais ampla, e que é o país que clama por uma revisão de “cultura”, do improviso para a programação, para a prevenção, para o projeto.
A falta de projeto pode levar a danos irreversíveis, como ocorreu no Liberdade, de belo nome e triste destino, provavelmente vítima da gambiarra de que fala Wisnik. É o responsável pelo nono andar quem afirma que as decisões de obra foram tomadas pela contadora da empresa. Voltada à tecnologia moderna, a empresa estava desatenta aos seus limites profissionais. Infelizmente não é caso isolado. Como a imprensa publicou, passarela construída pelo Metrô do Rio, na Cidade Nova, teria sido, em parte, concebida pelo então presidente da companhia, um banqueiro. Muito próxima, foi construída uma ponte para os trens da mesma empresa, a qual leva o laurel de uma das obras mais feias da cidade. Quem a projetou? Como foi considerado o interesse público de preservar o ambiente paisagístico de um trecho importante da metrópole?
É o projeto que permite antecipar o fato e levar à reflexão coletiva. Mas tais questões não se resolvem com o Estado monitorando cada passo. É uma tarefa do Estado, das instituições e dos cidadãos. Cada ação nossa tem responsabilidade coletiva. As sociedades que se democratizam compartilham valores para além do obrigatório.
Talvez tenhamos nos acostumado com a ausência de projeto e do consequente debate. Mas será necessário retomá-los como prática em todas as escalas, do urbano ao edilício, seja no âmbito público, seja no privado. Lembremos: é da plataforma das cidades que se projeta o desenvolvimento do país.
* Arquiteto Presidente do IAB RJ. Email: smc@centroin.com.br
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