sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Teatro Guaíra, Paris e ideais de urbanidade

As duas escadarias que unem o nível da plateia ao primeiro balcão do Teatro Guaíra situam-se próximas à face de vidro voltada para a Praça Santos Andrade. A transparência converte as escadarias internas em parte da face externa. Numa noite de espetáculo, os transeuntes da Praça conseguem ver a movimentação do público dentro do Teatro, numa interação entre a cidade e o interior do edifício. Com esse detalhe, Rubens Meister comprovou não apenas sua competência arquitetônica, mas uma aspiração de urbanidade.


Há quem suponha que um apartamento de 42 metros quadrados é minúsculo. Nas propagandas imobiliárias, a felicidade é proporcional ao tamanho dos apartamentos e, para atingirem o nirvana, as famílias dependem de 300, de 500, de mil metros quadrados. Porém, uma cidade como Paris desmonta a falácia dessa “equação”. Milhares de parisienses vivem muito bem em apartamentos de 40 ou 42 metros quadrados. Milhões de pessoas em todo o planeta (inclusive este pobre escriba) sonham em residir naqueles imóveis. Surgem dúvidas: por que um apartamento modesto aqui é satisfatório alhures? O metro quadrado francês é maior do que o brasileiro?

Ora, caro leitor, entre nossas cidades e Paris há uma única e fundamental discrepância, que é... Paris! O apartamento parisiense não necessitará, por exemplo, de sala de estar social. Afinal, não há motivos para receber visitas numa sala se a cidade como um todo é muito mais interessante e os cafés fornecem jornais. O proprietário não se preocupa se o seu apartamento tem “apenas” 42 metros quadrados, já que ele pode usufruir de todas as muitas benesses que há nas proximidades.

Para que essa sensação exista e perdure é necessário que o espaço urbano seja tratado com sensibilidade e respeito. E aí surge uma outra questão: moramos dentro do quê? A resposta mais corriqueira é que moramos dentro de casas e apartamentos. Nessa resposta, o “fora” corresponde à cidade. Isso pode acarretar problemas, como supor que o espaço privado tem proprietários e que o espaço público não pertence a ninguém. Nessa situação, pouco importa a degradação urbana, pois os interesses resumem-se às belezas e aos encantos dos mundos particulares embutidos em casas e apartamentos. Moramos dentro do quê? Uma resposta mais complexa e profícua é que moramos dentro de uma residência que, por sua vez, encontra-se “dentro” da cidade. Quem responde assim tenderá a acreditar que o espaço público pertence a todos. Aí, qualquer degradação de qualquer trecho urbano passa a ser um problema de toda a coletividade que mora “dentro” daquela cidade.

Esse é o motivo do encanto proporcionado pelas ruas e praças de muitas cidades europeias (em especial, as italianas). A Praça de San Marco, em Veneza, deve ser atravessada com lentidão e sossego, assim como a Praça Navona, em Roma, ou a Praça Dante, em Verona. Só assim pode-se perceber que aquelas praças são salões a céu aberto, nos quais as mesas dos cafés substituíram os sofás, nos quais as floreiras substituíram vasos e as calçadas substituíram tapetes.

As escadarias e a face de vidro do Teatro Guaíra permitem a interação entre o interior do edifício e a cidade. Meister parecia desejar que a Praça Santos Andrade fosse uma sala de estar, na qual os expectadores, após os espetáculos, saboreassem um café, um sorvete ou uma cerveja e discutissem o que acabaram de assistir. Ao contrário disso, o comum é que os expectadores do Teatro Guaíra saiam correndo rumo aos estacionamentos, apanhem seus carros e desapareçam na noite. Curitiba será muito melhor no dia em que o sonho de Meister se realizar e a Praça Santos Andrade for uma sala de estar que complemente e unifique o prédio da UFPR e o Teatro Guaíra, e não uma simples e neutra área de passagem. E melhor ainda será quando tratarmos todas as praças e ruas como salas. Nesse dia, não moraremos dentro de apartamentos ou de casas. Moraremos dentro de Curitiba. E a metragem quadrada da nossa moradia será igual ao tamanho da cidade.


Irã Taborda Dudeque, arquiteto, é professor da PUCPR.


OBS: Este texto faz parte de uma rodada quinzenal de discussões sobre a cidade. Também integram o grupo os autores Clovis Ultramari, Fabio Duarte e Salvador Gnoato. Tema desta rodada: relação entre o espaço público e o privado.
Fonte: http://iab-rs.blogspot.com/2012/02/o-paradoxo-brasileiro.html

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