Por Sérgio Magalhães
Três anos depois da tragédia no Morro do Bumba, Niterói, edifícios
que ainda estavam sendo construídos para os desabrigados tiveram que ser
demolidos. Com rachaduras, eram irrecuperáveis. No Rio, o estádio do
Engenhão é interditado por problemas estruturais. Obras importantes —
como metrôs e museus — até triplicam de preço durante a construção. Há
algo em comum entre esses casos?
A autonomia entre as atividades
de projeto e de construção decorreu do aumento de complexidade dos
edifícios. Enquanto a tecnologia construtiva era vernacular, as duas
atividades eram conjuntas. Já no Renascimento elas se diferençavam.
Com
a Modernidade se alcançou um novo patamar que levou à especificidade
doutrinária e programática tanto do projeto como da obra,
distinguindo-se autorias e responsabilidades. Quem projeta não constrói.
(Quem acusa não julga; quem joga não apita.) Há impedimentos éticos
essenciais que determinam essa prática.
Mas no Brasil, há alguns
anos, tem sido desconsiderada essa necessária independência. Os governos
têm exacerbado uma simbiose que é responsável pela reiteração de
dificuldades em obras públicas. E pelo seu encarecimento.
Lei
federal que rege as compras públicas aboliu a exigência do projeto
completo para se proceder à licitação da obra. Permitiu-se que o
detalhamento de um projeto, o Projeto Executivo, fosse realizado
concomitantemente com a construção. Ora, isso cria uma indefinição
orçamentária que leva à hegemonia do construtor sobre o projeto. Assim,
especificações podem ser descaracterizadas em benefício financeiro do
detentor do contrato de obra e em detrimento da qualidade. É óbvio: os
fatores de convencimento conduzidos pelo construtor são mais prementes,
ou valiosos, do que os determinantes projetuais. Ou seja, o governo
compra um coelho e recebe um gato.
Recentemente, a lei passou a
permitir que uma etapa ainda mais inicial, o Anteprojeto, servisse de
base à licitação. Sob o argumento que seria necessário aos prazos
comprometidos com a Copa do Mundo, concedeu-se ao construtor ainda maior
poder de decisão. Quem acredita que sem projeto se ganha tempo?
Está
na moda a chamada Parceria Público Privada. Em geral, contorna
licitações, também transferindo importantes decisões de projeto e de
obra aos empresários.
O estádio do Engenhão, dizem os jornais, tem
vários pais e nenhum assume a paternidade: “O projeto é da construtora
anterior”, “Mandei copiar do estádio do Benfica”, e “A ideia partiu de
um antigo projeto de Niemeyer”. A dita “marca do Pan-2007”, que teve o
preço inicial aumentado em seis vezes, está sem autoria...
No
programa Minha Casa Minha Vida, todo o processo fica com a empreiteira:
escolha do terreno, “projeto” e construção. Com o governo ficam o
pagamento e a designação do morador. A este, cabe aceitar ou aceitar.
(As aspas na palavra projeto aí estão porque quase sempre se trata de um
“carimbo”, que se ajusta, ou não, aos lugares... como visto no Bumba.)
A
função governo cresceu muito no Brasil. Mas o Estado está aquém do
necessário, como nos serviços públicos urbanos, cuja universalização é
exigência democrática.
A promiscuidade entre projeto e construção
não favorece o cumprimento das responsabilidades que a República
pressupõe. Coelho é coelho; gato é gato.
Boa Páscoa!
*Sérgio Magalhães é arquiteto
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