segunda-feira, 27 de maio de 2013

ARTIGO: Cidadania não é consumo

Por José Garcez Ghirardi

Os sorrisos de Camila Pitanga e de Ronaldo Gianecchini nos comerciais da Caixa e do Banco do Brasil, respectivamente, abriram caminho para a notícia de que os dois bancos superaram, com lucros recordes, seus rivais privados em 2012. A conjunção de apelo popular e dirigismo econômico não é acidente e ilustra uma das escolhas políticas mais decisivas da gestão da presidente Dilma Rousseff.
Acreditando que a fórmula para avançar na agenda social sem desagradar os mercados é criar um país de classe média ("no mínimo", para usarmos os termos da presidente), o governo tem abraçado a ideia de inclusão via consumo. Críticas a esse modelo são sumariamente rechaçadas como fruto de ressentimento ou de má-vontade. Mas é preciso ter a coragem de fazê-las porque as contradições entre as demandas muitas diversas de inclusão e consumo, silenciadas neste momento, ameaçam a qualidade de vida futura de todos os brasileiros. E o que é pior: arriscam fragilizar, de modo particularmente cruel, justamente aqueles grupos mais vulneráveis, tornando efêmeras as conquistas atuais.

É preciso deixar claro, em primeiro lugar, que há vários modelos de países de classe média - a Suécia, a Austrália e o Canadá, são exemplos dessas diferentes versões - e várias formas de se pensar a relação entre consumo e bem estar social, assim como há vários modos de construir a regulação que tal relação solicita do Estado. Dizer "país de classe média" não significa dizer, portanto, sociedade justa ou funcional, nem tampouco primazia do interesse coletivo.

Agressiva ação para a compra de carro contrasta com as poucas iniciativas para melhorar o transporte público

No que tange aos pressupostos dessa premissa, não está dado que a expansão do consumo leve necessariamente à inclusão - a história recente dos Estados Unidos tem algo a nos ensinar nesse ponto. No que tange a questões mais diretamente econômicas - a pressão inflacionária, o crescente endividamento familiar, a fragilização estrutural do setor produtivo, apenas para citarmos alguns exemplos - não está dado que o modelo atual seja sustentável.
Além disso, e de modo mais grave, há uma diferença crucial entre estimular o consumo e referendar a lógica do consumismo - diferença que o atual paradigma de gestão parece desconsiderar. No primeiro caso, a ampliação do poder aquisitivo é objetivo atrelado à consolidação e melhoria dos bens coletivos. No segundo, há um sucateamento desses mesmos bens e uma ampliação dos espaços privados e individuais de consumo.
A recente opção do governo em relação à industria automotiva ilustra bem as implicações que resultam de uma escolha pelo segundo modelo. A agressiva ação governamental para que cada um adquirisse seu carro - por meio da longa e repetida redução de IPI e pela expansão do crédito- tornou mais evidente, pelo contraste, a timidez das iniciativas para efetivamente melhorar e ampliar a qualidade do transporte público.

A mensagem implícita é a de que o transporte é, em primeiro lugar, um problema individual e apenas residualmente um problema coletivo. Dentro dessa lógica, o melhor modo de saná-lo é transferir recursos (via crédito mais barato ou renúncia fiscal, por exemplo) para que cada um cuide do seu. O uso de ônibus, metrô e trem vai se tornando índice de falta de opção e não do seu oposto.
Esses meios coletivos de transporte atendem, em regra, àqueles que não podem adquirir seu veículo e, assim, livrar-se do desrespeito quotidiano de ter que submeter-se a condições muitas vezes desumanas para chegar ao trabalho e à casa. No processo, a qualidade geral de vida decai, e a locomoção nas cidades se torna cada vez mais lenta e cada vez mais desgastante.

O argumento do emprego que é tantas vezes utilizado para justificar tal opção, apenas confirma a tendência do consumismo de remediar o presente às custas do futuro. A manutenção e a ampliação sustentável do emprego, em médio e longo prazo, solicitam políticas mais complexas de inovação tecnológica e de qualificação profissional que não combinam com o afã imediatista do consumismo e do ganho político - sobretudo quando os próprios governantes tendem a absolutizar o hoje e a minimizar a importância de ajustes estruturais pregressos. Para quem promove esta agenda, a deterioração das cidades, o aumento dos custos mais básicos do dia a dia e o ataque ao meio-ambiente são secundários ao apoio político passageiro e ao fetiche da propriedade individual, em um movimento que revela o quanto têm em comum os imediatismos gêmeos do populismo e do lucro.

O trânsito, como já se apontou, é uma dos indicadores mais precisos para revelar as opções de fundo feitas pelas sociedades e seus governantes. A dinâmica quotidiana do transporte público espelha, sem disfarces, o desenho e a qualidade da convivência democrática nos espaços político e social. Viajando lado a lado, indivíduos com histórias, condições e interesses divergentes percebem que têm que saber construir juntos algo que sirva efetivamente a todos. Percebem que esta opção prevê regras de conduta e de cooperação, de respeito à diferença, de busca de aperfeiçoamento do que é coletivo, de zelo pelo que é patrimônio comum. Eles podem optar pela tarefa difícil de construir este espaço comum ou podem priorizar resoluções de cunho individual.

Se a alegoria do trânsito nos ajuda a refletir sobre questões mais amplas, a imagem que temos do país a partir da circulação nas ruas preocupa, e muito. Ela indica uma sociedade em que o individualismo consumista ganha força, em que o diálogo democrático se empobrece e em que grupos específicos têm excessiva capacidade de pressão junto ao governo, sendo capazes de impor agendas corporativas e de retardar agendas genuinamente coletivas. O legítimo desejo do país de ser uma nova potência, deve começar pela opção de ser uma potência nova. Isto requer criatividade e coragem para contrapor-se à lógica reinante que fomenta o reducionismo perverso de confundir consumo e cidadania.

*José Garcez Ghirardi é professor da Direito GV/SP





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