quinta-feira, 22 de agosto de 2013

As marcas da miséria

Roberto Ghione*

A miserabilidade é evidência da decadência humana, que se manifesta, em termos sociais, na arrogância, prepotência, impunidade e autoritarismo com que determinados grupos agem em benefício próprio e em detrimento do bem estar geral, acobertados por um sistema baseado na troca de favores entre o poder político e setores de produção ou de prestação de serviços. A condição de miséria espiritual que permeia as ações destes grupos se traduz na miséria real que sofrem amplas franjas da população historicamente relegadas e sem oportunidades de desenvolvimento social, cultural ou econômico. A triste circunstância desses setores atrela um país à situação de subdesenvolvimento e, por tanto, alheia aos requerimentos de integração e intercambio global entre os países desenvolvidos do planeta.

A cidade evidencia, na estrutura urbana, as marcas da miséria. Edifícios excludentes e condomínios fechados, shopping centers, informalidade e descaso nas áreas de comercio popular, calçadas deterioradas, espaços públicos decadentes, centros históricos abandonados, periferias urbanas degradadas, habitações precárias em terrenos invadidos e em áreas não aptas para a moradia humana, falta de saneamento e infraestrutura, transporte público deficiente, conjuntos habitacionais sem características de cidade, improviso e falta de planejamento são, dentre outras, as marcas vergonhosas da miséria social, que demonstram a indignidade a que é submetida grande parte da população brasileira e a persistência da desigualdade e injustiça social, que impedem atingir o patamar de verdadeiro desenvolvimento.

O antídoto contra a miséria é a dignidade e a promoção da auto-estima social. Arquitetura e urbanismo, levados a sério e comprometidos socialmente, são instrumentos que possibilitam dignificar a pobreza e iniciar processos efetivos de desenvolvimento social e urbano. Para isso, precisa-se de uma postura ética do próprio exercício profissional, assim como das decisões políticas, orientada a favorecer o interesse geral por cima do particular ou setorial.

A consciência do poder transformador da arquitetura e do urbanismo revela-se em intervenções em áreas periféricas com edifícios dignos e estimulantes do desenvolvimento humano e urbano. As bibliotecas de Medellín e Bogotá, dentre outras ações, são lições da importância de prestigiar os habitantes mais carentes com obras de qualidade arquitetônica e construtiva. A consciência que pobre não precisa arquitetura, tão comum nas intervenções que se realizam nas cidades brasileiras, manifesta um preconceito que mergulha a sociedade na desintegração e na violência. Esta realidade merece ser mudada em função de uma atitude ética que privilegie as pessoas mais necessitadas em benefício de toda a comunidade.

Cicatrizar as marcas da miséria e conter o sangramento ético provocado pela corrupção persistente constituem os grandes desafios das sociedades em desenvolvimento. As manifestações recentes nas cidades brasileiras evidenciam a presença de grupos sociais esclarecidos e conscientes dos direitos e oportunidades de transformar uma realidade adversa, que os condena a uma vida dependente de atitudes defensivas em centros urbanos que perdem, a cada dia, a condição de convivência pacifica e civilizada.

Hoje, as cidades brasileiras enfrentam a maior crise da história. Elas se encontram, por tanto, frente às maiores oportunidades de transformação. As alternativas são poucas: afundar na imobilidade, violência e desintegração social que oferece o modelo atual fragmentado e excludente, ou apelar à sensibilidade e à inteligência para planejar com visão de longo prazo a cidade para uma sociedade integrada e inclusiva, sustento do desenvolvimento genuíno e duradouro. 

Os desafios são urgentes e precisam das forças sociais mais esclarecidas para sentar as bases de planejamento e construção da cidade merecida. É preciso dar uma oportunidade à arquitetura e urbanismo qualificados e comprometidos com a ideia que fazer cidade significa algo mais que a simples construção de edifícios, repensar os centros urbanos como espaços de convivência humana e não como palcos de negócios imobiliários, promover e exigir sistemas de atuação e avaliação política que valorizem o interesse geral em lugar dos particulares ou setoriais, estimular a imaginação e a emoção para a construção dos lugares urbanos em lugar da fria observância de leis burocráticas e tecnocráticas, consagrar uma ética humanista em lugar de comercial, e curar para sempre as marcas da miséria, que colocam a sociedade nos extremos da indignidade e do subdesenvolvimento no panorama deprimente das cidades contemporâneas brasileiras. 

*Roberto Ghione é arquiteto e urbanista (www.vprgarquitetura.com.br)

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