Autora: Arquiteta e Urbanista Angela D´Ornelas Ponsi
Especialista em Direito Urbano e Ambiental pela FMP/RS.
Porto Alegre, 16 de
dezembro de 2013.
No contexto da Copa do Mundo e outros eventos
mundiais, revela-se um estado de exceção permanente, de desrespeito aos
direitos fundamentais. O governo, servo do capital, não é mais protagonista dos
caminhos da administração pública. Não há legado que supere o prejuízo da
violação de nossa ordem constitucional.
Johnny Wilson Batista Guimarães[1]
A oportunidade de atrair
investimentos públicos e privados, capazes de melhorar as condições de vida da
população e, com isso, reduzir as desigualdades sociais, é a base do discurso
utilizado pelos governantes para a promoção de eventos esportivos internacionais.
A possibilidade de sediar um evento de grande amplitude, capaz de alavancar a
economia local e promover reestruturações urbanas, desencadeia uma disputa
entre países e cidades, ansiosos por visibilidade e respeito mundial. Guiados
por um espírito desenvolvimentista e nacionalista, fomentado pela globalização econômica,
alguns povos podem tornar-se, num primeiro momento, cegos aos efeitos negativos
gerados e que a infeliz experiência internacional tem tornado evidente em
países como a África do Sul, a China e a Índia, cujos direitos humanos e
sociais foram incisivamente ceifados por ocasião dos megacampeonatos.
A grande mídia e os comitês
esportivos, com o intuito de despertar o envolvimento da população, apresentam
apenas os impactos e legados positivos, anunciando o desenvolvimento do
turismo, a implantação de obras de infraestrutura e o embelezamento das cidades
sede como solução para os problemas urbanos. O Brasil, entretanto, com as
manifestações de insatisfação coletiva intensificadas em julho de 2013, provou
que não estava dormindo ou, tampouco, anestesiado pelos encantos que o futebol
proporciona. Eleito para sediar a Copa das Confederações em 2013, a Copa do
mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, nosso país, que vêm sendo alvo do
capitalismo global, deixou uma mensagem clara: os fundamentos da Constituição Federativa
Brasileira devem ser respeitados acima dos interesses da FIFA[2] ou de qualquer outra
organização internacional que anseie por desfrutar de nossa riqueza mais cara,
qual seja a soberania popular.
De fato, a soberania
popular foi posta em risco pela FIFA, e a resposta da sociedade brasileira ecoou
por todo o mundo. A imprensa internacional noticiou o levante de um povo contra
os abusos do poder econômico ligado ao capitalismo global. Todos puderam
presenciar a onda de protestos contra o aumento das passagens, a péssima
qualidade dos serviços públicos, a indignação com a corrupção dos políticos
brasileiros e, por fim, o desvio de verbas públicas decorrentes das obras da
Copa. As passeatas, de outra banda, expuseram a forte e violenta repressão
policial contra a massa de manifestantes pacíficos, não poupando mulheres e
jovens que saíram gravemente feridos. É surpreendente que o “país do futebol”
tenha sido o primeiro a rebelar-se tão ativamente contra o uso indevido de
recursos públicos e a violação de direitos políticos e sociais, como saúde,
habitação, segurança, transporte, educação, saneamento, entre outros, para
atender aos interesses financeiros exclusivos dos organizadores do Mundial e de
grupos econômicos que se locupletam com a brecha cedida pela criação de instrumentos
normativos de exceção.
A formação de um “estado
de exceção”[3],
instituído pela “legislação da FIFA”, permitiram a flexibilização das leis e
suspensão de direitos desde a fase anterior do campeonato até a sua execução e
com término indeterminado, repercutindo numa maratona de obras e investimentos
públicos e privados provenientes de fontes escusas, desconsiderando por completo
o planejamento urbano e ambiental nas cidades. Os projetos para as obras, em
contrapartida, são desconhecidos da população e pouca (ou quase nenhuma)
transparência se tem dos custos efetivos para sua construção. Nesse contexto, e
com o aval do Poder Público, chefiado por gestores e políticos inescrupulosos,
efeitos perversos frustram os mecanismos de defesa e de proteção social,
suspendendo os Direitos Humanos, Coletivos, Urbanísticos e Ambientais,
prevalecendo as regras impostas pelo Comitê da Copa. Com efeito, a
excepcionalidade temporária de limitações de direitos fundamentais e medidas
coercitivas destoantes da normalidade constitucional são facilitadas por meio
de acordos e concessões entre o Poder Público e grandes empresas, em geral
multinacionais.
A
grande imprensa tentou inutilmente abafar ou discriminar os movimentos
legítimos da sociedade civil, o que foi desmentido pela mídia alternativa e
pelos ativistas nas redes sociais, postando e compartilhando fotos e vídeos com
violação dos direitos humanos e repressão policial que se tornaram virais,
disponibilizando imagens chocantes que circularam livremente em muitos países. O
que se viu foi um despertar coletivo para os problemas sociais gerados pelo
sistema capitalista neoliberal e pela ausência de um estado regulador da
economia mundial. O Brasil passou a ser o foco de resistência à globalização
econômica e não mais o “país do futebol”. Os reflexos desse despertar social
brasileiro, todavia, não cessaram nas manifestações massivas das ruas durante a
Copa das Confederações, continuaram de forma mais organizada, reunindo
entidades representativas e apoiados no ordenamento jurídico. A sociedade conta
hoje com a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, de
ONGs e dos demais órgãos de proteção aos direitos humanos e coletivos.
A
sociedade civil organizada tem mantido uma atuação constante desde antes das
manifestações acontecerem e dominarem os noticiários. As ações da Articulação
Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), coletivo formado por movimentos
sociais, organizações, representantes de comunidades, pesquisadores e outras
pessoas, entidades e ativistas, produziu dossiês, relatórios especiais e
denúncias de arbitrariedades e violações a direitos humanos, alterando indiscriminadamente,
e de forma ambientalmente prejudicial, o espaço urbano e a estrutura das
cidades.[4] O dossiê previu que as
cidades eleitas para receber os jogos passariam por uma intensa “faxina
social”, onde muitas comunidades seriam abolidas e suas populações removidas
para zonas distantes e desprovidas de recursos. A atuação arbitrária do Estado
se daria como forma de aumentar o valor imobiliário dessas localidades,
repassando a mais-valia decorrente de seus investimentos à iniciativa privada.
A
Relatora Especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia
Adequada, Raquel Rolnik, aponta que o impacto dos megaeventos contra os
residentes nas áreas de interesse econômico ocasionam sérias disparidades e a
acentuam a desigualdade social, considerando que não se percebe preocupação com
os direitos humanos ou tampouco com os meios de promover a regeneração das
cidades atingidas pelos jogos. Explica a relatora que “as conquistas no campo
da legalidade e do direito à cidade, fruto sobretudo da luta da população de
menor renda, são ignoradas e tratadas de maneira ambígua e discricionária.” De
fato, os pobres são sempre os que mais sofrem os efeitos da dicotomia capital x
social. “No caso de comunidades removidas, o direito à posse e à moradia digna
são convenientemente relegados a uma condição secundária em função da equação
da lucratividade dos projetos de intervenção urbanística (ROLNIK, 2012, p 14).
Segundo
a jurista Betânia Alfonsin[5], os megaeventos esportivos
ocasionam sérios impactos, sobretudo negativos, de ordem urbanística,
ambiental, social, econômica, cultural e simbólica (intangível). O processo de
especulação imobiliária é facilitado, causando o encarecimento da terra urbana.
Observa ela que a gravidade da relativização das leis federais é minimizada no
senso comum, tendo em vista o “efeito analgésico que o futebol causa na
população”. Como resultado, tem-se a flexibilização da legislação relacionada à
Lei de Licitações (regime
Diferenciado de contratações), ao Estatuto
da Cidade (exigências da FIFA prevalecem sobre os planos diretores), à Legislação Ambiental (Lei Geral da Copa
flexibiliza o licenciamento ambiental dos empreendimentos ligados à Copa) e à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei
Geral da Copa permite o superendividamento dos municípios). Inúmeros são os
riscos gerados como traumas sociais em função dos despejos violentos e
desrespeito aos direitos humanos; imagem do Brasil arranhada por violação
desses direitos; produção dos chamados “elefantes-branco”, que são equipamentos
não utilizados ou subutilizados após a realização dos megaeventos.
Isso sem falar das restrições
ao comércio local para garantir a dominação do mercado pelas marcas
patrocinadoras da Copa, além da elitização do esporte em função do preço
exorbitante dos ingressos para assistir aos jogos nos estádios. Em vista de
tais abusos, Alfonsin sustenta que “a população tem o direito de defender e de
proteger as conquistas jurídicas e políticas recentes que, em especial, servem
para proteger a sociedade da violação de seus direitos”, sendo essa a única
maneira de “estar à altura dos desafios e da historicidade do momento presente”.
Assim, garante ela que, se os atores públicos e privados responsáveis pelos
eventos não respeitam os direitos humanos, a justiça social e o direito à
cidade para as presentes e futuras gerações, resta à sociedade civil organizada
resistir por meio da mobilização popular, capaz de “impedir que o Brasil se torne um Estado de Exceção durante a
realização da copa do mundo no país e de outros megaeventos”. E é
exatamente isso que estamos vivenciando em Porto Alegre, cidade que deu início
às primeiras mobilizações: a formação de frentes populares unidas por um
objetivo comum: frear as atividades nocivas do mercado imobiliário e da
construção civil, apoiados por parte dos gestores públicos e dos vereadores,
garantindo a proteção e a perpetuação dos direitos humanos e sociais.
Referências
Bibliográficas
FERNANDES, Karina Macedo. “Megaeventos
esportivos no Brasil: quem paga a conta?” Disponível em: http://unisinos.br/blogs/ndh/2013/06/14/megaeventos-esportivos-no-brasil-quem-paga-a-conta/# Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
Articulação Popular Nacional pela
garantia dos Direitos Humanos, no contexto dos Megaeventos. Terra de Direitos –
Organização de Direitos Humanos. Disponível em: http://terradedireitos.org.br/biblioteca/articulacao-popular-nacional-pela-garantia-dos-direitos-humanos-no-contexto-dos-megaeventos/ Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista.
“Megaeventos e legislação de exceção. Poderes como servos do capital e legado
de ataque aos direitos fundamentais”. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24900/megaeventos-e-legislacao-de-excecao#ixzz2nZeOthRX Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
ROLNIK, Raquel. “10 Anos do Estatuto da
Cidade: Das Lutas pela Reforma
Urbana às Cidades da Copa do Mundo”.
[1] Johnny
Wilson Batista Guimarães é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da
UFMG, especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, com
extensão universitária em formação para o Magistério Superior. Habilitado pela
OAB/MG, é Escrivão de Polícia Federal, classe especial, lotado e em exercício
na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG, na
Delegacia de Defesa Institucional.
[2] Fédération
Internationale de Football Association: entidade suíça de direito privado que
regula o futebol em todo o mundo.
[3] Johnny
W. B. Guimarães alerta que “vivemos num estado de exceção protagonizado pelo
capital e pelos poderes constituídos, servos deste mesmo capital. O peculiar
contexto vivido pelo Brasil, alvo das atenções da mídia mundial e, bem por
isso, sob pressão crescente de interesses de grupos econômicos, em detrimento
dos valores preconizados na própria Constituição, permite um momento de
registro ímpar, que deixa às claras o alinhamento diverso da interpretação
constitucional legítima.”
[4] No
dossiê da ANCOP “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Brasil”, “que
teve a sua segunda edição lançada em maio de 2013, aponta-se que 170 mil
pessoas têm ou tiveram o seu direito à moradia violado ou ameaçado, assim como
que o direito à informação e à participação nos processos decisórios têm sido
negado a milhões de brasileiros, que desconhecem as alterações do espaço urbano
que vêm sendo empreendidas por ocasião dos megaeventos. O documento também
relata que os chamados Comitê Olímpico Internacional, Comitê Olímpico
Brasileiro e os comitês organizadores locais dos eventos são constituídos por
entidades privadas a quem o governo tem delegado responsabilidades e
atribuições públicas. Mais ainda, o relatório afirma que 3.099 famílias já
foram removidas e que outras 7.843 estão sob ameaça de remoção pelas obras para
a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.”
[5]
Dados retirados da Palestra de Betânia Alfonsin “Megaeventos Esportivos:
Impactos e Legados da Copa de 2014” durante os “Encontros de Capacitação para a
Copa: Copa Legal é Copa que Respeita os Direitos Humanos”.
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