quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

ARTIGO: Promoção de Megaeventos e Suspensão de Direitos Fundamentais

Autora: Arquiteta e Urbanista Angela D´Ornelas Ponsi
Especialista em Direito Urbano e Ambiental pela FMP/RS.

Porto Alegre, 16 de dezembro de 2013.

No contexto da Copa do Mundo e outros eventos mundiais, revela-se um estado de exceção permanente, de desrespeito aos direitos fundamentais. O governo, servo do capital, não é mais protagonista dos caminhos da administração pública. Não há legado que supere o prejuízo da violação de nossa ordem constitucional.
Johnny Wilson Batista Guimarães[1]

A oportunidade de atrair investimentos públicos e privados, capazes de melhorar as condições de vida da população e, com isso, reduzir as desigualdades sociais, é a base do discurso utilizado pelos governantes para a promoção de eventos esportivos internacionais. A possibilidade de sediar um evento de grande amplitude, capaz de alavancar a economia local e promover reestruturações urbanas, desencadeia uma disputa entre países e cidades, ansiosos por visibilidade e respeito mundial. Guiados por um espírito desenvolvimentista e nacionalista, fomentado pela globalização econômica, alguns povos podem tornar-se, num primeiro momento, cegos aos efeitos negativos gerados e que a infeliz experiência internacional tem tornado evidente em países como a África do Sul, a China e a Índia, cujos direitos humanos e sociais foram incisivamente ceifados por ocasião dos megacampeonatos.
A grande mídia e os comitês esportivos, com o intuito de despertar o envolvimento da população, apresentam apenas os impactos e legados positivos, anunciando o desenvolvimento do turismo, a implantação de obras de infraestrutura e o embelezamento das cidades sede como solução para os problemas urbanos. O Brasil, entretanto, com as manifestações de insatisfação coletiva intensificadas em julho de 2013, provou que não estava dormindo ou, tampouco, anestesiado pelos encantos que o futebol proporciona. Eleito para sediar a Copa das Confederações em 2013, a Copa do mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, nosso país, que vêm sendo alvo do capitalismo global, deixou uma mensagem clara: os fundamentos da Constituição Federativa Brasileira devem ser respeitados acima dos interesses da FIFA[2] ou de qualquer outra organização internacional que anseie por desfrutar de nossa riqueza mais cara, qual seja a soberania popular.
De fato, a soberania popular foi posta em risco pela FIFA, e a resposta da sociedade brasileira ecoou por todo o mundo. A imprensa internacional noticiou o levante de um povo contra os abusos do poder econômico ligado ao capitalismo global. Todos puderam presenciar a onda de protestos contra o aumento das passagens, a péssima qualidade dos serviços públicos, a indignação com a corrupção dos políticos brasileiros e, por fim, o desvio de verbas públicas decorrentes das obras da Copa. As passeatas, de outra banda, expuseram a forte e violenta repressão policial contra a massa de manifestantes pacíficos, não poupando mulheres e jovens que saíram gravemente feridos. É surpreendente que o “país do futebol” tenha sido o primeiro a rebelar-se tão ativamente contra o uso indevido de recursos públicos e a violação de direitos políticos e sociais, como saúde, habitação, segurança, transporte, educação, saneamento, entre outros, para atender aos interesses financeiros exclusivos dos organizadores do Mundial e de grupos econômicos que se locupletam com a brecha cedida pela criação de instrumentos normativos de exceção.
A formação de um “estado de exceção”[3], instituído pela “legislação da FIFA”, permitiram a flexibilização das leis e suspensão de direitos desde a fase anterior do campeonato até a sua execução e com término indeterminado, repercutindo numa maratona de obras e investimentos públicos e privados provenientes de fontes escusas, desconsiderando por completo o planejamento urbano e ambiental nas cidades. Os projetos para as obras, em contrapartida, são desconhecidos da população e pouca (ou quase nenhuma) transparência se tem dos custos efetivos para sua construção. Nesse contexto, e com o aval do Poder Público, chefiado por gestores e políticos inescrupulosos, efeitos perversos frustram os mecanismos de defesa e de proteção social, suspendendo os Direitos Humanos, Coletivos, Urbanísticos e Ambientais, prevalecendo as regras impostas pelo Comitê da Copa. Com efeito, a excepcionalidade temporária de limitações de direitos fundamentais e medidas coercitivas destoantes da normalidade constitucional são facilitadas por meio de acordos e concessões entre o Poder Público e grandes empresas, em geral multinacionais.
            A grande imprensa tentou inutilmente abafar ou discriminar os movimentos legítimos da sociedade civil, o que foi desmentido pela mídia alternativa e pelos ativistas nas redes sociais, postando e compartilhando fotos e vídeos com violação dos direitos humanos e repressão policial que se tornaram virais, disponibilizando imagens chocantes que circularam livremente em muitos países. O que se viu foi um despertar coletivo para os problemas sociais gerados pelo sistema capitalista neoliberal e pela ausência de um estado regulador da economia mundial. O Brasil passou a ser o foco de resistência à globalização econômica e não mais o “país do futebol”. Os reflexos desse despertar social brasileiro, todavia, não cessaram nas manifestações massivas das ruas durante a Copa das Confederações, continuaram de forma mais organizada, reunindo entidades representativas e apoiados no ordenamento jurídico. A sociedade conta hoje com a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, de ONGs e dos demais órgãos de proteção aos direitos humanos e coletivos.
            A sociedade civil organizada tem mantido uma atuação constante desde antes das manifestações acontecerem e dominarem os noticiários. As ações da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), coletivo formado por movimentos sociais, organizações, representantes de comunidades, pesquisadores e outras pessoas, entidades e ativistas, produziu dossiês, relatórios especiais e denúncias de arbitrariedades e violações a direitos humanos, alterando indiscriminadamente, e de forma ambientalmente prejudicial, o espaço urbano e a estrutura das cidades.[4] O dossiê previu que as cidades eleitas para receber os jogos passariam por uma intensa “faxina social”, onde muitas comunidades seriam abolidas e suas populações removidas para zonas distantes e desprovidas de recursos. A atuação arbitrária do Estado se daria como forma de aumentar o valor imobiliário dessas localidades, repassando a mais-valia decorrente de seus investimentos à iniciativa privada.
            A Relatora Especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, aponta que o impacto dos megaeventos contra os residentes nas áreas de interesse econômico ocasionam sérias disparidades e a acentuam a desigualdade social, considerando que não se percebe preocupação com os direitos humanos ou tampouco com os meios de promover a regeneração das cidades atingidas pelos jogos. Explica a relatora que “as conquistas no campo da legalidade e do direito à cidade, fruto sobretudo da luta da população de menor renda, são ignoradas e tratadas de maneira ambígua e discricionária.” De fato, os pobres são sempre os que mais sofrem os efeitos da dicotomia capital x social. “No caso de comunidades removidas, o direito à posse e à moradia digna são convenientemente relegados a uma condição secundária em função da equação da lucratividade dos projetos de intervenção urbanística (ROLNIK, 2012, p 14).
            Segundo a jurista Betânia Alfonsin[5], os megaeventos esportivos ocasionam sérios impactos, sobretudo negativos, de ordem urbanística, ambiental, social, econômica, cultural e simbólica (intangível). O processo de especulação imobiliária é facilitado, causando o encarecimento da terra urbana. Observa ela que a gravidade da relativização das leis federais é minimizada no senso comum, tendo em vista o “efeito analgésico que o futebol causa na população”. Como resultado, tem-se a flexibilização da legislação relacionada à Lei de Licitações (regime Diferenciado de contratações), ao Estatuto da Cidade (exigências da FIFA prevalecem sobre os planos diretores), à Legislação Ambiental (Lei Geral da Copa flexibiliza o licenciamento ambiental dos empreendimentos ligados à Copa) e à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Geral da Copa permite o superendividamento dos municípios). Inúmeros são os riscos gerados como traumas sociais em função dos despejos violentos e desrespeito aos direitos humanos; imagem do Brasil arranhada por violação desses direitos; produção dos chamados “elefantes-branco”, que são equipamentos não utilizados ou subutilizados após a realização dos megaeventos.
Isso sem falar das restrições ao comércio local para garantir a dominação do mercado pelas marcas patrocinadoras da Copa, além da elitização do esporte em função do preço exorbitante dos ingressos para assistir aos jogos nos estádios. Em vista de tais abusos, Alfonsin sustenta que “a população tem o direito de defender e de proteger as conquistas jurídicas e políticas recentes que, em especial, servem para proteger a sociedade da violação de seus direitos”, sendo essa a única maneira de “estar à altura dos desafios e da historicidade do momento presente”. Assim, garante ela que, se os atores públicos e privados responsáveis pelos eventos não respeitam os direitos humanos, a justiça social e o direito à cidade para as presentes e futuras gerações, resta à sociedade civil organizada resistir por meio da mobilização popular, capaz de “impedir que o Brasil se torne um Estado de Exceção durante a realização da copa do mundo no país e de outros megaeventos”. E é exatamente isso que estamos vivenciando em Porto Alegre, cidade que deu início às primeiras mobilizações: a formação de frentes populares unidas por um objetivo comum: frear as atividades nocivas do mercado imobiliário e da construção civil, apoiados por parte dos gestores públicos e dos vereadores, garantindo a proteção e a perpetuação dos direitos humanos e sociais.

Referências Bibliográficas

FERNANDES, Karina Macedo. “Megaeventos esportivos no Brasil: quem paga a conta?” Disponível em: http://unisinos.br/blogs/ndh/2013/06/14/megaeventos-esportivos-no-brasil-quem-paga-a-conta/# Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
Articulação Popular Nacional pela garantia dos Direitos Humanos, no contexto dos Megaeventos. Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos. Disponível em: http://terradedireitos.org.br/biblioteca/articulacao-popular-nacional-pela-garantia-dos-direitos-humanos-no-contexto-dos-megaeventos/ Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. “Megaeventos e legislação de exceção. Poderes como servos do capital e legado de ataque aos direitos fundamentais”. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24900/megaeventos-e-legislacao-de-excecao#ixzz2nZeOthRX Acesso em: 16 de dezembro de 2013.
 ROLNIK, Raquel. “10 Anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma
Urbana às Cidades da Copa do Mundo”.




[1] Johnny Wilson Batista Guimarães é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, com extensão universitária em formação para o Magistério Superior. Habilitado pela OAB/MG, é Escrivão de Polícia Federal, classe especial, lotado e em exercício na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG, na Delegacia de Defesa Institucional.
[2] Fédération Internationale de Football Association: entidade suíça de direito privado que regula o futebol em todo o mundo.
[3] Johnny W. B. Guimarães alerta que “vivemos num estado de exceção protagonizado pelo capital e pelos poderes constituídos, servos deste mesmo capital. O peculiar contexto vivido pelo Brasil, alvo das atenções da mídia mundial e, bem por isso, sob pressão crescente de interesses de grupos econômicos, em detrimento dos valores preconizados na própria Constituição, permite um momento de registro ímpar, que deixa às claras o alinhamento diverso da interpretação constitucional legítima.”
[4] No dossiê da ANCOP “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Brasil”, “que teve a sua segunda edição lançada em maio de 2013, aponta-se que 170 mil pessoas têm ou tiveram o seu direito à moradia violado ou ameaçado, assim como que o direito à informação e à participação nos processos decisórios têm sido negado a milhões de brasileiros, que desconhecem as alterações do espaço urbano que vêm sendo empreendidas por ocasião dos megaeventos. O documento também relata que os chamados Comitê Olímpico Internacional, Comitê Olímpico Brasileiro e os comitês organizadores locais dos eventos são constituídos por entidades privadas a quem o governo tem delegado responsabilidades e atribuições públicas. Mais ainda, o relatório afirma que 3.099 famílias já foram removidas e que outras 7.843 estão sob ameaça de remoção pelas obras para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.”
[5] Dados retirados da Palestra de Betânia Alfonsin “Megaeventos Esportivos: Impactos e Legados da Copa de 2014” durante os “Encontros de Capacitação para a Copa: Copa Legal é Copa que Respeita os Direitos Humanos”. 

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