Autor: Arquiteto e urbanista Roberto
Ghione
As cidades brasileiras estão sendo cobertas por um manto de arquitetura
imobiliária repetitiva e banal, sem contemplações para as características
naturais do território, do patrimônio cultural, da identidade social, da
convivência civilizada, nem para a vivência dos espaços urbanos como lugares
integradores das pessoas, razão de ser dos mesmos.
Essa arquitetura tornou-se elemento depredador, baseado em estruturas
defensivas; dependente do automóvel; segregado do espaço público; estimulante
da violência (da qual procura se defender); inimigo da urbanidade; fomentador
do uso exclusivo e excludente em detrimento das misturas integradoras;
ferramenta do capital para impor privilégios setoriais à custa do
aprofundamento da desigualdade e da injustiça social. Conta com a cumplicidade
da mídia institucionalizada, que tira partido dos benefícios das transformações
urbanas de cidades consolidadas como palcos de negócios, substitutivas da
convivência civilizada de cidadãos desintegrados pela própria ditadura do capital.
Destrói o espaço urbano, destinando as áreas mais nobres de convivência social
para depósito de carros estacionados, matando de vez qualquer intento de
sociabilidade. Relega as pessoas e coloca o automóvel no centro de todas as
decisões do projeto, subordinando a quantificação e qualificação dos
empreendimentos ao número de vagas de estacionamento. Arrasa a paisagem urbana,
configurando uma não-cidade de muros e guaritas.
Nesta situação, a figura do arquiteto encontra-se tensionada entre a
construção (construção?) da cidade determinada pela obediência aos interesses
do capital e a consciência profissional estimulante de uma atuação em prol da
dignificação e integração social, através da projetação de lugares urbanos
qualificados para a vida em comunidade.
O serviço profissional de arquitetura, no contexto do exercício
liberal, deve obedecer às leis que regulam o desenvolvimento das cidades, assim
como defender os interesses dos clientes e seus direitos de usufruir da
rentabilidade do patrimônio imobiliário. A consideração da cidade como palco de
negócios tem destruído os princípios elementares de convivência civilizada e
fomentado uma consciência extrativa do capital social, constituído pela terra
urbanizada e as relações humanas que lhe dão sentido.
O predomínio do conceito de cidade como bem de câmbio tem relegado e
subordinado os princípios transcendentes da urbanidade e da civilidade aos
temporais e passageiros da lucratividade, assim como os da solidariedade e
convivência cidadã aos da individualidade e exclusão social. A arquitetura
resultante deste contexto é evidentemente depredatória e contraditória com os
conceitos de transcendência e estímulo da vida em comunidade, razão de ser e de
atuar dela.
O arquiteto, profissional formado para construir os espaços
significantes e dignificantes da vida em sociedade, passa a ser visto como
depredador e dependente de um sistema perverso, que fomenta a valorização
monetária do capital urbano mais que os valores transcendentes da arquitetura
como bem cultural e lugar estimulante da convivência cidadã; de leis que
privilegiam direitos individuais à custa da desintegração e da exclusão social;
de um sistema, em definitivo, que tem provocado o caos e os conflitos que hoje
padecem as cidades do Brasil.
Em tempos de crise e de reflexão, a consideração do papel da
arquitetura e do urbanismo merece especial atenção. O Estado vai continuar a
gastar recursos na formação de profissionais obedientes dos interesses do
mercado e alienados com as frivolidades das classes dirigentes? As exigências
de elaborar Planos Diretores das cidades vão continuar como mais um requisito
burocrático e tecnocrático? Os gestores, políticos e instituições de classe vão
enfrentar de vez os problemas das cidades brasileiras? A arquitetura vai ser
considerada manifestação cultural? Os estudantes e profissionais continuarão a
consumir e transferir imagens dos países desenvolvidos, alheias às realidades
locais? O projeto de arquitetura e de cidade sério, reflexivo e integrado será
considerado definitivamente o instrumento adequado para estimular o
desenvolvimento das cidades e do país? O planejamento urbano e territorial em
todas suas instâncias será assumido como política de Estado? A emoção e a
sensibilidade terão vez na definição das políticas urbanas?
Arquitetura e urbanismo como instrumentos de dignificação e o arquiteto
como agente de cultura são causas comprometidas com o desenvolvimento efetivo
do país, marcadas por ações transcendentes, orientadas na superação da
realidade depredatória que hoje arrasa as cidades e acaba com a convivência
social civilizada. Assumir e difundir o papel social da profissão impõe-se como
objetivo prioritário se a finalidade é reivindicar a imagem do arquiteto e
iniciar um processo de real transformação e consolidação das cidades
brasileiras como vetores de ordem e progresso.
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