quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Recife italiano

Autor: Arquiteto e urbanista Roberto Ghione
            Já imaginou um cidadão veneziano chamar sua cidade de “Recife italiano”? A provocação é absurda e tenderia a denigrar a inteligência e a sensibilidade dos habitantes daquela cidade. Porém, a situação contrária resulta habitual. Mais que isso: motivo de orgulho para muitos habitantes desta cidade do Recife, que possui valores naturais e culturais excepcionais ainda presentes no tecido urbano da cidade histórica e nos cursos de água dos seus rios, mas que para a mentalidade periférica daqui tem que ter relação com os de lá, da romântica, turística e bem vendida cidade de Veneza.
          Quem já teve a oportunidade de viver dias naquela magnífica cidade sabe que este Recife, provinciano e pretensioso, é muito diferente em termos urbanísticos, paisagísticos, vivenciais, culturais, históricos e sociais. Tem pouco em comum entre elas, além de algum tramo de cidade voltado para as águas, situação normal em muitos centros urbanos que decidiram valorizar seus rios em lugar de dar as costas, como acontece aqui, com exceção de algumas áreas históricas. Os exemplos são inumeráveis, a partir das capitais européias, como Paris, Londres, Berlim, Amsterdã, Viena, Budapeste, etc.
          Uma circunstância usual em qualquer cidade civilizada, como é valorizar urbanisticamente os cursos de água, aqui se torna motivo de orgulho periférico. Tal condição demonstra a frivolidade de uma sociedade alienada e sujeita a questões de aparências anacrônicas, incapacitada para assumir a verdadeira identidade de um fato urbano repleto de valores culturais e ambientais, que não são considerados pela natureza própria, mas pela referência inusitada ao apelo chique e turístico de uma realidade externa.
          Em termos urbanísticos, Veneza é uma grande praça dividida em calles (ruas de pedestres), fondamentas (bordas de canais), cortes, (pátios sem saída), campos (praças), mercerias (ruas principais e movimentadas), ramos (ramificações laterais de ruas), sotoportegios (passagens cobertas), pontes, rivas e infinidade de situações que fazem um conjunto de extrema riqueza e mistério, um convite a se perder em um labirinto cheio de surpresas urbanas, culturais e paisagísticas, onde o pedestre é amo e senhor do espaço público.
          Na cidade, uma das mais visitadas do planeta, pessoas diferentes participam dela sem constrangimentos, cada um com suas atividades normais, apesar da constante avalancha de visitantes. Os vaporetti transportando moradores ou turistas e as barcas com mercadorias ou lixo convivem com os gondolieri e os encantos que determinam o apelo turístico. O comércio sofisticado compartilha o espaço com o uso diário, assim como os restaurantes mais refinados com as cantinas e trattorias populares. A realidade de Veneza é a de uma cidade viva e autêntica, pulsante com a vitalidade dos cidadãos, receptora de turistas, respeitosa da história, sem banalidade ou frivolidade apesar do caráter comercial que o turismo impõe.
          A presença da história determina sua identidade. Os monumentos e arquitetura doméstica testemunham séculos de evolução urbana e convivem com edifícios modernos respeitosos do passado, sem renunciar à contemporaneidade. A arquitetura para residências populares se integra naturalmente ao tecido da cidade histórica, em uma continuidade que valoriza os tempos presente e passado, com soluções dignas que celebram a integração social, assim como as paisagens e lugares da cidade.
          Veneza é um modelo de urbanidade que deveria ser mais bem considerado pelos grupos sociais que pretendem compará-la ao Recife. Basta analisar as diferenças para entender que a valorização de uma cidade não é uma simples questão de aparências.
          Uma cidade empenhada em segregar seus habitantes, construir edifícios excludentes e agressivos ao patrimônio natural e cultural, privilegiar o automóvel em detrimento das pessoas e negligenciar o cuidado dos espaços públicos jamais poderá ser comparada com Veneza ou qualquer outra cidade civilizada.
          O título auto concedido de “Veneza brasileira” só pode ser piada de mau gosto. Talvez um ponto de aproximação entre uma e outra se produz nas épocas de chuva, quando as ruas da cidade se transformam, invariavelmente, em rios que levam preocupação e enfatizam as misérias e o abandono das pessoas mais vulneráveis da sociedade.

          Nem “Recife italiano” nem “Veneza brasileira”. Cada cidade é depositária de um destino histórico próprio afirmado nos valores culturais do seu povo e nas testemunhas arquitetônicas e urbanas. Saber reconhecer esses valores, sem referências estranhas ou induzidas, é o inicio de uma maturidade que colocará a cidade no caminho do efetivo desenvolvimento social e cultural.

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