Roberto Ghione
A essência do urbanismo consiste em determinar as diretrizes para a construção
de cidades pacíficas e civilizadas, estimulantes da convivência entre as
pessoas, inteligentes e racionais, estreitamente interligadas com o território,
sadias e sustentáveis, integradas com a natureza, respeitosas
do passado e abertas ao futuro,
conciliadoras entre a identidade afirmada na história e os desafios da
contemporaneidade, manifestação suprema da cultura de um grupo humano.
A realidade das cidades brasileiras demonstra como esses princípios do
urbanismo encontram-se afastados da efetiva implementação. O próprio conceito
de cidade remete a convivência, intercambio, comunidade, manifestação evidente
da civilidade, da condição de cidadão, habitante, partícipe, proprietário. A
etimologia provém do latim Civitas: Civis (cidadão) e Itas (condição
de). Traduz um sentimento de pertencimento a um território e a uma comunidade,
origem do conceito de Pátria. Cidade ou parte dela, o bairro, define
muito mais que um fato físico, um território transformado para desenvolver as
necessidades de um grupo humano, uma construção cultural, uma interação entre
natureza e cultura. Define sentimentos coletivos difíceis de quantificar ou
racionalizar. Sentimentos expressados no orgulho cidadão, na gentileza urbana,
nas manifestações da cultura, nas competências esportivas, nas celebrações dos
rituais da convivência. Sentimentos de tempo e lugar condensados por vínculos
afetivos, culturais e históricos. Pátria refere a país, paese em
italiano, que provêm do latim pagus, aldeia, origem também do conceito
de pagão, vinculado ao lugar, à terra, oposto ao sacro, o
sagrado, que vêm de Deus.
O
conceito de cidade, como o de pátria, pode ser assimilado ao de Lugar de
nascimento, terra paterna, natural ou adotiva de um ser humano, com a qual se
sente ligado por causas que superam o racional. Lugar como espaço
transcendente, qualificado pelas relações humanas que lhe dão sentido e pela
inteligência das ações que transformam o território, condicionam os
comportamentos e definem a cultura.
Atentos
a esses princípios e conceitos, resulta complicado e contraditório chamar as
cidades contemporâneas brasileiras de tais, do modo como vêm sendo
configuradas, assim como resulta difícil considerar o urbanismo como tal.
Construções, edifícios, ruas, espaços, etc. que não estimulam a convivência,
não honram o conceito de Civitas, podem ser chamados de qualquer coisa
(condomínio, clube, residence, prédio, chateau, privé, conurbações, eixos de
expansão, bairros planejados, novas urbanizações, amontoado de casas ou de
edifícios, designações de moda em qualquer idioma promovidas por estratégias
mercadológicas...), menos de cidade. De igual forma, o urbanismo que não
promove os sentimentos de Pátria, de Lugar, com suas conotações
existenciais, pode ser considerado um amontoado de leis, um conjunto de
tramitações burocráticas, um compendio de tecnocracia, porém jamais a
disciplina cuja essência foi descrita no inicio.
A
sociedade brasileira assiste, sem ter plena consciência, à destruição do
conceito de cidade enquanto ambiente de celebração da vida em comunidade e
encontra-se mergulhada em círculos viciados que impedem o desenvolvimento sadio
de estruturas urbanas e humanas qualificadas. A enorme pressão exercida pelo
crescimento da população urbana e a consideração do território como mercadoria
tem extrapolado as previsões e desvendado a crise do planejamento na cultura
nacional.
A
reflexão acerca dos princípios e conceitos de urbanismo, cidade e arquitetura
precisa ser reconsiderada, melhor avaliada e inserida na cultura social e
política, se o objetivo é que o Brasil evolua em termos de efetivo
desenvolvimento.
Urbanismo
como política de Estado e Arquitetura como matéria e essência dele são hoje
conceitos difusos. A real natureza e necessidade não aparecem nos discursos
políticos nem supera a burocracia de muitos organismos públicos que atendem
problemas específicos, sem orientação política ou filosófica para instituir
ações de valorização das cidades.
No
campo profissional, a ideologia do edifício isolado do contexto e do “arquiteto
estrela”, cuja obra deve aparecer e se destacar, ainda se ensina e persiste em
muitas consciências. A discrição e o bom senso como estratégias de intervenção
são substituídas pela espetaculosidade de um tempo que promove a
individualidade, o egoísmo e a fragmentação da cidade.
A
urbanidade como instrumento da sociabilidade e a arquitetura como qualificadora
do ambiente construído são conceitos amplamente difundidos, porém pouco
assimilados na cultura brasileira, se consideramos o modelo de cidade em
construção. O sinal de alerta ascendeu com a violência, a exclusão, a
imobilidade e a ausência de equidade, e precisa de ações emergenciais para
resolver o colapso urbano e restaurar a integração social.
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