quarta-feira, 21 de agosto de 2013

ARTIGO: Os projetos públicos e a governança

Por João Augusto Ribeiro Nardes*

Costumo dizer em minhas palestras pelo País e no exterior que, sob determinada pressão, o carvão vira diamante. E o que temos visto nas manifestações populares que palmilham o Brasil de norte a sul é uma prova viva de como o controle da sociedade, a pressão popular exercida de forma ordeira e pacífica, tem o poder de transformar a realidade.

Capturando com maestria os anseios da sociedade, que agora se materializam nas ruas, o Planejamento Estratégico do Tribunal de Contas da União (TCU) identificou, ainda em 2011, algumas diretrizes de atuação para o período de 2011 a 2015, entre as quais a melhoria da governança pública, para que o País pudesse vencer os gargalos do pleno desenvolvimento.

Para que o leitor compreenda bem a conexão entre nosso direcionamento estratégico e as demandas apresentadas nas manifestações populares e também com o debate proposto pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), é importante que se saiba que a governança pública está relacionada ao objetivo de criar na administração um ambiente seguro e favorável para a formulação, implementação e avaliação de políticas públicas em benefício da sociedade.

No setor privado, a governança das empresas nasce da necessidade de evitar que os administradores, na gestão do negócio, afastem-se dos interesses dos proprietários da empresa. Na linguagem da governança, os proprietários são definidos como “Principal”, e os administradores, “Agentes”, e há sempre o risco de desalinhamento de seus objetivos. É o chamado risco de agência.

Transplantando os conceitos para a governança pública, “Principal” é a sociedade, a população, e ‘Agente” são todos os integrantes da administração pública, desde os políticos democraticamente eleitos, até os ministros, secretários, e tantos outros gestores, cuja atuação tem por objetivo maior entregar serviços de qualidade aos cidadãos.

Visto o que é governança, podemos compreender como sua melhoria pode ser indutora do desenvolvimento nacional, que pode ser entendido como crescimento econômico conjugado com mais qualidade de vida para as pessoas, pela oferta de serviços de interesse comum, como saúde, educação, segurança e mobilidade urbana. Assim, quanto mais seguros e confiáveis são os instrumentos de governança, mais chances tem a população de ter serviços públicos de qualidade que, aliados ao crescimento econômico, resultarão no desenvolvimento da nação.

Nesse ponto, acredito que começa a ficar claro o objetivo estratégico do TCU de contribuir para a melhoria da governança pública. O que intenta o Tribunal é colaborar para que a administração pública seja cada vez mais capaz de utilizar determinados instrumentos que assegurem a supremacia da vontade popular sobre o interesse dos gestores públicos ou de determinados grupos privados.

Entre esses instrumentos, a literatura sempre traz a transparência como elemento fundamental da governança, além do planejamento estratégico, com definição clara de objetivos e metas, controle da execução e dos resultados e prestação de contas. Na verdade, a transparência e prestação de contas são pressupostos da governança, uma vez que a população deve ser capaz de avaliar se os serviços prestados pelos diversos níveis de governo estão de acordo com seus anseios. E mais, já a priori, durante a execução das tarefas que resultarão nos produtos entregues, é necessário avaliar se o comportamento dos gestores é condizente com os padrões de ética e de qualidade requeridos pela sociedade.

A transparência é a grande ferramenta que permite à sociedade participar das decisões de planejamento e implementação das políticas públicas, acompanhar a sua execução e avaliar a sua efetividade e qualidade. E é aí que entra a importância dos projetos, que definem, em um contexto delimitado das contratações públicas, como serão as aquisições de materiais médico-hospitalares, livros didáticos ou pequenas e grandes obras. É por meio dos projetos que os gestores materializam as grandes políticas públicas e garantem que os serviços serão entregues com os padrões estabelecidos.

Nesse ponto, tem razão o IAB em lançar essa discussão, uma vez que está em gestação no Congresso Nacional uma ampla revisão da Lei 8.666 que, sancionada em 1993, carece de atualização. Nessa revisão, há grande chance de serem incorporados eventuais avanços no Regime Diferenciado de Contratação (RDC), entre os quais, e o mais contestado, o regime de contratação integrada, concebido inicialmente apenas para as obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016.

O debate a respeito da contratação integrada diz respeito ao documento base para contratação de uma obra pública – Anteprojeto, Projeto Básico ou Projeto Executivo – e comporta defensores de diversas correntes.

Sobre a questão, cabe rememorar que a Lei nº 8.666 estabeleceu em seu art. 7º uma sequência obrigatória para que a Administração licite obras e prestação de serviços: I - projeto básico; II - projeto executivo; e III - execução das obras e serviços. Com efeito, o projeto básico foi transformado em instrumento obrigatório para o início da licitação de uma obra. Porém, a própria lei não se esqueceu de registrar na definição deste projeto que sua elaboração deverá observar as “indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento”.

Não obstante o comando de que “a execução de cada etapa será obrigatoriamente precedida da conclusão e aprovação, pela autoridade competente, dos trabalhos relativos às etapas anteriores”, o normativo excetuou a elaboração do projeto executivo, que pode ser desenvolvido concomitantemente com a execução das obras e serviços. Vale registrar que a lei não criou óbices à possibilidade de se utilizar o projeto executivo como pedra fundamental do processo licitatório das obras. Deixou ao escrutínio do gestor a escolha da melhor opção.

Sob os comandos exclusivos da Lei de Licitações, o assunto vem sendo objeto de debates no Pleno do TCU há mais de dez anos. Em uma dessas oportunidades, por meio do Acórdão nº 77/2002 – Plenário, o então Ministro Adylson Motta assim se manifestava: 

“Creio que se possa, nesse ponto, repetir o que tenho, insistentemente, afirmado acerca do açodamento com que são feitos os projetos de engenharia para a grande maioria de obras realizadas pelo poder público em nosso País, independentemente da esfera governamental em que se encontrem tais obras. O Projeto Básico, que deve ser encarado como elemento fundamental para a realização de qualquer licitação, deve, também, ser considerado o pilar de todo empreendimento, público ou privado, mas que tem sido constantemente mal-elaborado, quando há envolvimento de recursos públicos, em quaisquer das esferas administrativas, sem a atenção mínima necessária quando da sua confecção, o que é lamentável por se tornar fonte de desvios e toda sorte de irregularidades que se tem notícia no Brasil.”
Em 2008, por meio do Acórdão nº 2.439/2008 – Plenário, o Relator do processo, Ubiratan Aguiar, hoje ministro emérito, voltava à discussão do tema, destacando diversos outros precedentes: 


“Em primeiro lugar, constatou-se a absoluta deficiência do projeto básico elaborado para o empreendimento, fato que, infelizmente, não raras vezes é encontrado em licitações promovidas pelo (...) e que, dentre outros problemas, dá margem à prática do nefasto ‘jogo de planilhas’, em que as licitantes, sabedoras dos problemas no projeto básico, supervalorizam os itens cujos quantitativos estão subestimados e subvalorizam aqueles cujas quantidades estão superestimadas, com a certeza de que em momento posterior serão celebrados aditivos para corrigir esses problemas, que modificarão o equilíbrio econômico do contrato, em benefício da contratada e em desfavor do erário (vide Acórdãos 1.656/2007, 1.772/2006, 2.623/2007, 2.640/2007, todos do Plenário).”
Nesse contexto, diversas perguntas alimentaram, e continuam alimentando os debates: O problema dos aditivos está na qualidade dos projetos básicos ou na insuficiência de um projeto básico em sustentar uma contratação de obra pública? Por que não se apenam devidamente os maus projetistas? Seria melhor utilizar o projeto executivo em vez do básico? Por que não deixar a definição do projeto básico a cargo do responsável pela execução da obra?

Uma das tentativas de solução do impasse está contida no art. 9º da Lei nº 12.462/2011, que instituiu o RDC. O normativo trouxe o conceito de contratação integrada, compreendendo a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto.

Ainda segundo o RDC, o instrumento convocatório deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço e o valor estimado da contratação, calculado com base nos valores praticados pelo mercado, nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares ou na avaliação do custo global da obra, aferida mediante orçamento sintético ou metodologia expedita ou paramétrica.

Para julgamento das propostas apresentadas será adotado o critério de julgamento de técnica e preço. Caso seja permitida no anteprojeto de engenharia a apresentação de projetos com metodologias diferenciadas de execução, o edital estabelecerá critérios objetivos para avaliação e julgamento das propostas.

Segundo o RDC, é vedada a celebração de termos aditivos aos contratos firmados, exceto para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior; e por necessidade de alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação, a pedido da administração pública, desde que não decorrentes de erros ou omissões por parte do contratado, observados os limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei no 8.666/1993.

Em seu manifesto, o IAB repudia a inovação trazida pelo RDC, alegando que a prática gera “promiscuidade entre projeto e obra” e é indutora de reajustes e superfaturamento – além de fator estimulante de corrupção. O Instituto manifesta sua convicção de que um dos fatores determinantes para o aumento de custo das obras reside na ausência de projeto completo. Quando a obra pública é licitada a partir apenas do chamado “Projeto Básico” ou do “Anteprojeto”, transfere-se à construtora vencedora da licitação a tarefa de detalhar e completar o projeto. Em suma, defende que as obras públicas devem ser licitadas somente a partir de Projeto Completo. “Quem projeta, não constrói.”

Já os defensores do RDC e, mais especificamente, do regime integrado de contratação argumentam que, tanto quanto inovador, o regime de empreitada integrada é o que apresenta o maior potencial para trazer benefícios para Administração Pública, em termos de agilidade de construção e criatividade para identificar a solução mais adequada e econômica para cada tipo de empreendimento.

A nosso ver, a questão ainda requer discussões mais aprofundadas e exames de casos concretos. Atento a essa necessidade, o TCU promoveu no último mês de junho, sob a coordenação do Ministro José Múcio Monteiro, um seminário para debater oportunidades de avanços da Lei 8.666, comemorando seus 20 anos de vigência.

O objetivo do evento foi promover debates sobre a Lei de Licitações e contribuir para uma agenda positiva nas discussões a respeito da legislação e da necessidade de aprimoramento dos processos de contratações públicas. Foram convidadas autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como representantes de setores da iniciativa privada.

Ao fazer a abertura do evento, destaquei os mesmos conceitos de governança expostos neste artigo e enfatizei que o papel de uma lei tratando de licitações é dar aos cidadãos um instrumento que minimize os riscos de que, na gestão das aquisições governamentais, os interesses dos administradores, ou de terceiros, suplantem o interesse público.

Dessa forma, as amarras construídas no texto legal formam um arcabouço necessário para que as aquisições de produtos e serviços sejam feitas com o menor preço possível e com critérios técnicos aceitáveis. No entanto, enquanto alguns princípios são preservados no texto da lei, outros aspectos vitais podem ter sido comprometidos, como, por exemplo, o da celeridade. Ao longo dos 20 anos de vigência da Lei, alguns avanços foram exitosos, como o Pregão, o Pregão Eletrônico e o Sistema de Registro de Preços. Essa experiência demonstra que outros avanços podem ser alcançados, a partir de um amplo debate com a sociedade.

Um dos avanços que esperamos que sejam alcançados na elaboração de projetos, quer na linha defendida pelo IAB, quer na forma de contratação integrada, é a clara vinculação dos projetos à governança da entidade que os concebe. Numa ou noutra visão, é necessário que os projetos, básicos e executivos, estejam alinhados aos planos táticos e estratégicos das entidades, se submetam a controles rígidos e efetivos de qualidade de risco e sejam, de fato, instrumentos de transparência de qualquer empreendimento ou aquisição governamental. Nesse sentido, em recente decisão exarada em processo tratando de contratação de serviço de tecnologia da informação (TI), este Tribunal firmou o seguinte entendimento, que deve ser uma tônica comum a todos os projetos, especialmente de obras públicas:


As aquisições de bens e serviços de informática devem ser realizadas em harmonia com o planejamento estratégico da instituição e com seu plano diretor de informática, quando houver, devendo o projeto básico guardar compatibilidade com essas duas peças, situação que deve estar demonstrada nos autos referentes às aquisições.

O Poder Judiciário, por meio da Resolução nº 114/2010 – CNJ também encampou essa linha de orientação ao definir que “os tribunais elaborarão seu plano de obras, a partir de seu programa de necessidades, de seu planejamento estratégico e das diretrizes fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça”.

A questão do planejamento das obras públicas sempre foi uma de minhas maiores preocupações desde que cheguei ao Tribunal. No âmbito do parecer prévio das contas de governo do exercício de 2008, apresentei a seguinte reflexão sobre a expressiva quantidade de obras inacabadas existentes no País, algumas delas com excelentes projetos, básico e executivo, mas com total falta de vinculação ao planejamento das entidades que as conceberam ou as às diretrizes governamentais: 

Os resultados do TC-012.667/2006-4 ainda demonstram a falta de planejamento das obras executadas com recursos federais, sendo esta a segunda principal causa de interrupção evidenciada.

A ausência de planejamento que prejudica o andamento de uma obra pode acontecer em dois momentos: o primeiro é quando da decisão em incluir o projeto no orçamento e o segundo compreende as etapas de definição da obra para a licitação. Para a inclusão de uma obra na LOA seriam necessários estudos prévios para avaliar a viabilidade do empreendimento, mas não há regra no ordenamento jurídico atual que imponha essa condição. Já para a licitação de uma obra, há dispositivo na Lei 8.666/1993 que condiciona o procedimento à prévia existência de um Projeto Básico adequado, mas o descumprimento a essa regra ainda é bastante recorrente nas contratações da Administração Federal.

Vê-se, portanto, que a preocupação com o projeto, embora seja pertinente pelos riscos envolvidos, é apenas a ponta do iceberg. Não obstante, é louvável a iniciativa do IAB que, a despeito de ter um claro posicionamento sobre a questão dos projetos nas contratações públicas, amplia a discussão a respeito do tema para além das fronteiras de seus filiados, atenta à máxima da governança pública de que os interesses do “Principal”, clamorosamente explicitados nas manifestações populares, devem superar os interesses de grupos privados. Com iniciativas semelhantes de órgãos representativos da sociedade organizada, pressionando por melhorias na administração pública, teremos mais chances de alcançarmos o desenvolvimento pretendido, sólido e perene como o diamante.

* João Augusto Ribeiro Nardes é formado em Administração de Empresas, com Pós-graduação em Política do Desenvolvimento e com Mestrado em Estudos do Desenvolvimento pelo Institut Université d’Études de Genebra, Suíça. É também Especialista em Estatística do Trabalho pela Japan International Cooperation Agency (Jica).

Foi eleito presidente do TCU para 2013, e da Organização Latino-Americana e do Caribe das Entidades de Fiscalização Superiores (Olacefs) para o triênio 2013-2015. 

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